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FICÇÃO REAL
A raça só existe em nossas cabeças. Essa é a conclusão a que
se chega a partir da interessantíssima
pesquisa do grupo de Flavia Parra e
Sérgio Danilo Pena, da Universidade
Federal de Minas Gerais (UFMG),
publicada recentemente pela revista
da Academia de Ciências dos Estados Unidos.
Não é de hoje que a ciência vem
contestando o conceito de raça para
a espécie humana. Os recentes avanços no campo da genômica, por
exemplo, já bastaram para mostrar
que pode haver mais diferenças genéticas entre dois indivíduos brancos
do que entre um branco e um negro.
Na verdade, a comparação de genomas nos mostra que a espécie humana é, no que diz respeito aos genes,
quase idêntica à do chimpanzé e
possui muito mais semelhanças
com animais como ratos e vermes do
que gostaríamos de supor.
Mas a pesquisa de Parra e Pena é especialmente interessante porque ela
mostra que o que entendemos como
características raciais não se relaciona necessariamente com a origem
geográfica do genoma. Trocando em
miúdos, nem todo negro no Brasil é
geneticamente um afrodescendente,
e nem todo afro-brasileiro é necessariamente negro.
Isso é possível porque nem todas as
características da "negritude" ou da
"brancura" são obra dos mesmos
genes. Uma pessoa pode herdar de
um pai "negro" o cabelo encaracolado e, ao mesmo tempo, o nariz
adunco de uma mãe "branca".
Existem algumas características
que estão indissociavelmente ligadas
a certas regiões do globo. Trata-se de
adaptações de tipo ambiental. O gene responsável pela resistência à malária, por exemplo, possui inequívoca origem africana. Esse também é o
caso dos genes responsáveis pela pele escura. Em ambientes onde o sol é
inclemente, como a África, a produção extra de melanina protege contra
o câncer de pele, proporcionando
vantagem evolutiva.
O que o trabalho de Parra e Pena faz
é mostrar, com um bom nível de evidência, que as características que entendemos socialmente como "de negros" não guardam correlação estatística com a presença de genes inequivocamente africanos.
Curiosamente, nós seguimos perpetuando as "características" da "negritude" ou da "brancura" através da
seleção social. Como as pessoas tendem a escolher parceiros sexuais da
mesma "raça", acabam ficando com
indivíduos que trazem as particularidades tidas como emblemáticas. No
caso de "negros", prevaleceria a tríade pele escura, cabelo encaracolado e
nariz achatado.
As evidências científicas de que a
espécie humana é singular e de que
não faz sentido falar em raças constituem apenas um aspecto da luta contra o racismo. O fenômeno é paradoxal: não há raças em nível genético,
mas elas existem em nossas mentes,
e isso basta para que ganhem concretude social, possibilitando manifestações espúrias como o racismo.
Por vezes, os piores inimigos do homem são suas próprias fantasias.
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