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CRÍTICA
A miséria do espetáculo
EUGÊNIO BUCCI
À medida que a televisão e o cinema vão se embrutecendo, fala-se mais e mais em estetização da violência. Filmes, novelas, peças publicitárias e programas
de auditório são acusados desse que seria um terrível
pecado ético da indústria do entretenimento: transformar sequestros, assaltos, assassinatos e demais crimes de sangue em
objeto estético, ou melhor, em tema do divertimento público.
Fala-se também em espetacularização da miséria, que seria
um pecado análogo: apropriar-se do sofrimento dos mais pobres para convertê-lo em "fotos
de arte", em "filmes-denúncia",
em imagens comoventes.
Fala-se muito disso e, em geral,
fala-se num tom de condenação,
como se a estetização da violência
e a espetacularização da miséria
(pode-se trocar os termos e dizer,
também, estetização da miséria e
espetacularização da violência)
fossem apenas isso: desvios de
conduta dos responsáveis pela
mídia. Acontece que são mais do
que isso. Elas constituem o "modus operandi" dominante da mídia. É por meio da estetização e
da espetacularização, da violência e da miséria, que o "show business" funciona e fatura. Às
vezes, os resultados até surpreendem: são proezas estéticas
que podem servir como "alerta social". É o que aconteceu
com a boa série "Cidade dos Homens", exibida pela Globo,
que, no entanto, logo se diluiu no liquidificador geral da TV.
Outras vezes, os resultados servem apenas para embrulhar o
estômago, como demonstram os auditórios de fim de tarde e
de fim de linha. Mas, enfim, não é porque "estetiza" ou "espetaculariza" isso ou aquilo que a televisão é boa ou ruim. A tendência de espetacularizar e estetizar -o poder, a dor, o assassínio e tudo o mais- é uma lei geral da indústria do entretenimento (e da TV também). Até aí, portanto, nada de novo. A
nossa questão é outra.
A nossa questão é que a mania de retratar a favela, o tráfico,
o drama dos mais pobres, cada vez mais forte na TV, tem revelado menos a miséria da suposta realidade que se quer retratar e mais a miséria artística dos que a retratam. A espetacularização da miséria evidencia menos a angústia dos excluídos do que a carência estética dos que assinam os programas.
Penso nisso quando vejo, na Rede Record, essa série chamada "Turma do Gueto", que vai ao ar nas segundas à noite. Ela
ostenta pretensão, com sinais explícitos de que as ambições
artísticas em questão não respeitam nem mesmo o céu como
limite. A impressão é que as sequências de muitos cortes e
imagens de muitas cores querem
dialogar com os momentos mais
arrojados do longa-metragem
"Cidade de Deus". Claro que não
dá. Na outra ponta, a série é subnutrida de texto, de interpretação, de argumento e do que quer
que se queira. "Turma do Gueto"
lembra uma orquestra cujos músicos se vestem muito bem e cujos
instrumentos jamais se afinam.
Uma desolação. Uma desolação
não pelo que quer mostrar do
mundo, mas pelo que não consegue esconder de si mesma.
"Turma do Gueto" entra aqui
apenas como um dos muitos
exemplos que indicam essa deficiência de fundo da TV contemporânea. Essa epidemia de realismo social na TV (um realismo socialista de mercado) muito raramente traz alguma
contribuição artística. Quase sempre é apenas um fator de demagogia, ou de constrangimento, ou de oportunismo. Um fator de pobreza, pobreza de imaginação.
Estamos diante não do espetáculo da miséria, mas da miséria do espetáculo. O trocadilho é velho, é bom avisar de cara.
Ele foi usado por Karl Marx, em 1847, quando deu o título de
"A Miséria da Filosofia" para o livro em que contestava Proudhon, autor de "A Filosofia da Miséria". O trocadilho, portanto, é velhíssimo, mas se aplica muitíssimo bem à novíssima situação. Não da filosofia, pois que dessa eu não entendo nada,
mas do entretenimento, que eu também não entendo mas
posso explicar.
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