|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
"Nada de rir sem barulho"
FLÁVIO MIGLIACCIO
Quando fui aprovado, por acaso,
para fazer um curso de interpretação no Quarto Centenário da cidade
de São Paulo, vi que precisava frequentar teatros.
Mas e dinheiro para os ingressos?
Chegava na porta e ficava olhando...
pelo menos para decorar os nomes
dos atores, das peças... o que me ajudava muito nas aulas teóricas.
Um dia, estava na porta do Teatro
Santana, no centro da cidade, lamentando minha sorte por não poder assistir ao espetáculo em cartaz, quando
alguém me perguntou: "Você quer
entrar?".
Era o que eu mais queria. Estava
louco para ver Dulcina de Moraes e
Odilon Azevedo, dois artistas que faziam muito sucesso na época.
O sujeito me colocou pra dentro, e
descobri que aquilo tinha um preço:
eu ia fazer parte da claque.
Fui posto no meio de umas dez ou
15 pessoas, e ele orientou: "Bom, vocês já sabem, não é? Nada de exagerar
no riso, mas também nada de rir sem
barulho... de boca fechada".
Foi assim que eu descobri uma nova
profissão: rir, aplaudir.
No início, tudo bem. Ria com grande desenvoltura. Com o tempo, porém, fui ficando como os outros... triste, muito triste por ter que rir sem
vontade ou com uma fome miserável.
Um dia, cheguei a ouvir perfeitamente uma mulher resmungar num
dos monólogos do Odilon: "Que saudades daquela minha claque, lá no
Nordeste...". Ela era uma das carpideiras que costumam chorar os mortos nos velórios.
Quando descobri que o sujeito que
me contratara possuía uma rede de
claque, pedi-lhe, pelo amor de Deus,
pra fazer um rodízio de espetáculos,
pois não aguentava mais ver os mesmos atores, rir das mesmas piadas.
Percebi, depois, o quanto foram importantes aqueles tempos de claque
na minha formação profissional. Graças a eles, consegui assistir a quase todos os espetáculos da época.
Ajudaram-me, também, a respeitar,
ver com carinho e jamais deixar de ir
visitar o pessoal da claque nos programas humorísticos de que participo.
Afinal, o criminoso sempre volta ao
local do crime.
Flávio Migliaccio é ator, cineasta e
dramaturgo
Texto Anterior: "Astro" também chora em velório Próximo Texto: Finalmente!: Polêmica viagem dos Simpsons ao Rio é atração Índice
|