Para
a grande maioria das empresas, retomar sistemas de produção
usados há mais de 500 anos é algo inimaginável.
Mas não para a editora italiana FMR. Enquanto se discute
a possibilidade de a internet levar, no futuro, ao desaparecimento
dos livros impressos, a FMR faz uma aposta mais do que ousada:
produzir livros como na época do Renascimento italiano,
resgatando a riqueza artística e os métodos
artesanais empregados naquele período. O resultado
dessa estratégia é o livro contemporâneo
mais caro do mundo: "Michelangelo. La Dotta Mano"
(ou Michelangelo. A Mão Sábia), uma verdadeira
obra de arte em folhas que custa 100 mil de euros (R$ 241
mil).
Os primeiros 33 exemplares, do total de 99 da edição
limitada, já foram vendidos a clientes europeus e americanos,
e estão em produção, o que leva de três
a seis meses. A suntuosa obra de 24 kg e 264 páginas
foi mostrada ao Valor como se fosse uma antigüidade rara
que acaba de ser descoberta, com direito a luvas brancas para
o manuseio.
A capa do livro abriga uma escultura em mármore de
Carrara. Trata-se de uma réplica da Madonna della Scala,
uma das primeiras obras de Michelangelo, ainda adolescente.
A pedra, segundo a FMR, foi extraída da mesma pedreira
(a Il Polvaccio) da qual Michelangelo costumava adquirir o
mármore para suas principais criações.
O veludo de seda que cobre a capa é confeccionado
em teares antigos, que produzem somente oito centímetros
de tecido por dia. "É uma aventura louca. Uma
verdadeira provocação", disse ao Valor
Marilena Ferrari, presidente do grupo FMR. Ela pretende, ao
ressuscitar os conceitos e técnicas do Renascimento,
dar novo vigor à tradição do "made
in Italy".
"O Renascimento não faz apenas parte da História.
É o que permite hoje a sobrevivência da produção
italiana, ressaltando a grande criatividade e a excelência
de seu refinado trabalho artesanal. Se quisermos impulsionar
o 'made in Italy' devemos retornar às suas origens",
diz Marilena, que contratou ateliês de artistas e artesãos
para os trabalhos de encadernação, impressão
gráfica, caligrafia e fotolitogravuras, entre outros.
O papel, elaborado com puro algodão, fibra por fibra
à mão, não contém ácidos
nem derivados de clorina, que causam a deterioração
do material com o tempo. Uma marca d´água, feita
com uma técnica usada no século XIV, reproduz
a assinatura de Michelangelo em cada página do livro
que relata sua vida e obra. O texto foi escrito por Giorgio
Vasari, arquiteto e pintor italiano, que viveu no século
XVI e considerado por especialistas o melhor biógrafo
de artistas conterrâneos. Até mesmo as dimensões
da obra, de 42 por 68 cm, aplicam a chamada seqüência
Fibonacci - relação numérica que permite
chegar a um "número de ouro", utilizado há
séculos na arquitetura, escultura e pintura para simbolizar
a harmonia.
"Michelangelo. La Dotta Mano", lançado por
ocasião dos 500 anos do início dos afrescos
do artista na Capela Sistina, reúne 45 gravuras de
desenhos e documentos do artista italiano. Além dos
33 exemplares já vendidos a pessoas físicas,
outros 33 serão destinados a museus internacionais,
como o do Prado, em Madri, que já recebeu a obra. Mais
um lote de 33 deverá ser produzido no médio
prazo com uma capa diferente (reprodução de
outra escultura do artista).
"Michelangelo. La Dotta Mano", é apenas
o primeiro livro da nova coleção "Book
Wonderful" do grupo FMR. O segundo, sobre o escultor
Canova, sairá em janeiro. Um outro, sobre a rainha
francesa de origem italiana Catarina de Médicis, será
totalmente escrito à mão e terá apenas
cinco exemplares. O primeiro deve ficar pronto no final deste
ano. Esse livro não estará à venda e
servirá como uma espécie de amostra do trabalho
idealizado por Marilena Ferrari.
Com ele, a presidente da FMR planeja rodar o mundo para apresentar
seu projeto de marketing "made in Italy" a clientes
abonados. "Não posso vender uma obra com essa
sofisticação. Que preço cobraria?",
pergunta, referindo-se à obra sobre catarina de Médicis.
Para esse projeto, que vem sendo desenvolvido há dois
anos, ela precisou criar escolas de caligrafia e de trabalhos
em miniaturas.
Os livros têm garantia de 500 anos. E isso não
é brincadeira. "A composição do
papel e dos demais materiais foi pensada pelos artesãos
para perdurar. É algo seríssimo", diz Marilena.
Ela fundou, em 1992, a ART´E, uma editora especializada
em livros de arte, que comprou, em 2003, a lendária
editora FMR, iniciais de Franco Maria Ricci, criada nos anos
60.
Ricci entrou para a história do mercado editorial
mundial pela riqueza do conteúdo e sofisticação
dos livros publicados por sua empresa. Esse aristocrata de
Parma começou lançando o Manual Tipográfico
de Bodoni. Nos anos 70, ele reeditou a prestigiosa Enciclopédia
de Diderot e d´Alembert, obra máxima do Século
das Luzes.
Ricci tornou-se um verdadeiro ícone do luxo, cercado
por grandes personalidades artísticas e literárias.
Lançada em 1982, a revista de arte FMR é, até
hoje, considerada a mais bela e renomada do mundo. Mas em
2000, com 63 anos e sérias dificuldades financeiras,
Ricci vendeu a FMR a uma empresa com participações
em grifes de moda, como Dolce & Gabbana e Versace, que,
por sua vez, a revendeu três anos depois à ART´E´.
"FMR estava se desmanchando. Era uma perda para o mundo
da cultura", diz Marilena. Naquele período, ART´E´
já havia conquistado prestígio internacional.
Em 2000, a editora realizou para o Papa João Paulo
II a obra Evangeliarium. Foi com esse mesmo livro que o cardeal
Ratzinger prestou sermão antes de ser nomeado Papa.
No início de 2008, as duas empresas realizaram uma
fusão, que deu origem ao grupo FMR. Com sede em Bolonha,
na Itália, e escritórios em Paris, Madri e Nova
York, o grupo FMR faturou, em 2007, 42 milhões de euros,
com expansão de 14% em relação a 2006.
A livraria de Milão foi recentemente fechada, restando
apenas a mítica de Paris, situada na elegante galeria
Vérot-Dodat, ao lado de grandes grifes de luxo. É
o show-room da FMR.
A FMR também lançou a série "Book
Beautiful", com livros "bem mais acessíveis",
entre 2 mil e 12 mil euros, sobre artes, literatura, religião
e viagens. E quem acha exorbitante o preço de 100 mil
euros por um livro de arte é porque não viu
o modelo de bolsa em couro de crocodilo na Hermès em
Paris: mais de 120 mil euros e não traz nada sobre
o Renascimento.
Daniela Fernandes
Valor Econômico
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