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Os professores andam assustados,
desestimulados, doentes, com medo. Especialmente os da rede
pública. O relato do professor José (nome trocado a pedido
dele), que tem 33 anos e leciona há dez, é emblemático. Menos
de um ano depois de prestar concurso e começar a dar aulas
de história em uma escola estadual da zona norte de São Paulo,
ele já pensa em pedir exoneração. O dia-a-dia na escola é
estafante, mas foi um episódio envolvendo um dos alunos da
quinta série que o deixou doente.
"Coloquei para fora da sala, à força, um menino de 13 anos
que vivia me provocando. Ele atrapalhava o andamento das aulas,
não levava material e me desacatava o tempo todo. Saiu quase
arrastado da sala e ficou lá fora gritando, esmurrando a porta",
relata o professor. Como a escola não tem inspetor de alunos,
a sensação de impotência dos professores é total. "Na hora
de ir embora, vi que meu carro estava todo riscado. Não posso
acusar, mas sei que foi ele." Segundo ele, o garoto não apareceu
mais na escola, mas mandou recado. "Disse que estava na minha
cola e que ia me matar", afirma. "Ele é egresso da Febem,
o pai está preso e a mãe diz que não sabe mais o que fazer
com o filho. Faltei duas semanas e voltei decidido a me exonerar,
comecei a ter insônia depois que uns amigos do garoto avisaram
que estavam de olho em mim. Já sabiam, inclusive, onde eu
morava." A diretora da escola sugeriu que José procurasse
um psicólogo. Em licença desde abril, ele está tomando antidepressivo
e fazendo psicoterapia. "Às vezes, encontrava uns alunos que
trabalham num mercadinho perto de casa e só de ouvir eles
me chamando de professor, já entrava em pânico, começava a
suar frio", recorda. "Você entra num processo de baixa auto-estima
que é meio degenerativo e começa a se questionar se vale à
pena ser tratado dessa forma. Estudar tanto e ter de sucatear
seu trabalho por causa de um sistema ineficaz, que obriga
você a passar de ano crianças semi-analfabetas, sem noção
de nada... A escola estadual virou depósito de alunos, você
não consegue falar, não consegue dar aula", lamenta José.
Ele afirma que a sala de informática da escola tem computadores
novinhos, mas fica fechada porque não há um profissional treinado
para dar apoio ao professor. "Ainda não sei se volto. Eu me
inscrevi no concurso de remoção. Pelo menos, me livro daquelas
pessoas."
Assim como José, muitos professores andam desiludidos com
o sistema educacional. Nas escolas particulares também há
indícios de que a falta de disciplina e de limites pode comprometer
o relacionamento entre professores e alunos. O psiquiatra
Paulo Gaudêncio, que trabalha com pais, professores e escolas,
conta um episódio que revela a inversão total de valores nos
ambientes de ensino voltados para a classe média alta. "Um
menino de menos de dez anos disse para o professor: "Eu pago
seu salário, cuidado com o que você faz comigo, senão, meu
segurança vai te dar um pau". É a esse professor, tratado
como inferior, que delegaram a tarefa de colocar limite? [Essa
tarefa] é ímpossível e, se tentar, ele não vai conseguir.
A escola não está preparada para esse desafio, os pais também
estão perdidos, pedindo socorro. Estamos criando uma geração
que não aprendeu a se colocar limites, que não tem competência
para encarar frustrações", argumenta o psiquiatra. "Ganhamos
em liberdade, mas perdemos em autoridade e disciplina. São
extremos opostos. Tudo isso acaba se somando perigosamente.
A classe média está indo para o crime", pondera. Para Gaudêncio,
o professor da rede privada também se sente desamparado, já
que, em eventuais embates com o aluno-cliente, é sempre a
parte mais fraca. "Ele não tem o apoio dos pais, é muito cobrado
e também não conta com o respaldo da direção da escola, que
não pode perder alunos. O professor está com medo e não tem
como colocar a agressividade para fora", completa. Para ele,
a combinação desses fatores tem resultado, em muitos casos,
em depressão. "Tenho atendido a vários professores em minha
clínica e percebo que o desânimo deles está aumentando. É
muito chato quando você deixa de ter uma profissão e passa
a ter um emprego. Trabalha apenas pela remuneração, mas quer
viver fora daquele ambiente", constata Gaudêncio. Esse desencanto
dá força à tese, surgida há dois anos, de que a profissão
de professor está em vias de extinção. O mote foi a divulgação,
em 2003, de uma pesquisa feita pela CNTE (Confederação Nacional
dos Trabalhadores em Educação) que ouviu 4.656 pessoas, em
dez estados, em todos os níveis e redes de ensino. O resultado
é estarrecedor: 53,1% dos professores em atividade estavam
na faixa dos 40 aos 59 anos e 38,4% estavam na faixa dos 25
aos 39 anos. Apenas 2,9% dos professores em atividade tinham
entre 18 e 24 anos. Ou seja, o número de jovens ingressando
na profissão é inexpressivo. Esse perfil etário é agravado
por dois fatores: 85% dos educadores são mulheres, que se
aposentam com 25 anos de carreira (conjugados com a idade),
e a maioria dos entrevistados já somava 15 anos de profissão.
A projeção dos analistas, na época da divulgação dos dados
da CNTE, era que, em dez anos, a falta de professores -que
já é crônica na rede pública, em disciplinas como matemática,
física e química- chegaria a níveis alarmantes.
A educadora Rosana Aparecida Argento Rebelo
é especialista em indisciplina. Sua dissertação de mestrado
na PUC-SP (Pontifícia Universidade Católica de São Paulo)
é sobre o tema e acabou virando o livro "Indisciplina Escolar:
Causas e Sujeitos" (Vozes, 124 págs., R$ 15,80)", que está
na terceira edição. Além disso, Rosana tem de se deparar,
diariamente, com problemas disciplinares na Escola Municipal
José Honório Rodrigues, onde atua como coordenadora pedagógica.
"A escola fica na Vila Curuçá, na zona leste de São Paulo,
um dos 20 primeiros distritos da capital em exclusão social",
contextualiza.
Segundo Rosana, são seis os principais responsáveis pela indisciplina:
pais autoritários ou licenciosos demais, currículo elitista,
prática pedagógica inadequada, falta de formação do docente,
resistência do professor a mudanças e políticas públicas incompatíveis
com a realidade escolar. "Sempre fui uma coordenadora muito
criticada, afinal, o professor também é indisciplinado. Como
ele pode bancar uma discussão em sala se não lê o jornal,
não se informa, não tem um olhar crítico do mundo? Como pode
despertar o interesse do aluno com uma prática pedagógica
espontaneísta, do tipo "quem quer aprender, que aprenda, quem
não quer, não me encha'? A escola pública é o único espaço
onde o educador -e isso inclui coordenadores e diretores-
acha que não precisa estudar nem aperfeiçoar sua formação",
critica.
Para tentar mudar esse panorama, Rosana resolveu influenciar
na formação de professores, influenciando-os na outra ponta:
a universidade. Passou a ensinar prática de ensino e metodologia
na graduação e na pós-graduação da Unicsul (Universidade Cruzeiro
do Sul). "Meus alunos são obrigados a freqüentar cinema e
teatro. Tem gente com 40 anos que não conhecia nem a avenida
Paulista", relata. Na escola pública, no entanto, ela também
conseguiu progressos. "Temos um grupo de professores que começa
a entender algumas questões importantes. Ao conhecer os pais
do Zezinho, entendem por que ele é indisciplinado. Por outro
lado, para conseguir envolver a família, você não pode chamar
os pais só para falar mal do filho. Com palestras, discussões
e atividades, conseguimos trazer o pai um pouco mais para
dentro da escola. Em nossa última reunião, compareceram 630
pais de mil alunos", comemora a coordenadora. Outra prática
que Rosana recomenda é o diagnóstico anual do público atendido.
"Fala-se muito em discutir valores, mas quais? Do professor
ou do aluno? Na nossa comunidade, sabemos que 50% são católicos
e 50%, evangélicos. A renda média é de três salários mínimos
e a maioria dos pais tem ensino fundamental incompleto. Apenas
2% dos alunos possuem computador e, destes, só 1% tem acesso
à internet. De posse desses dados, planejamos melhor nossas
atividades. Tem gente que fecha os conteúdos antes de começar
o ano. Como é possível dar uma aula interessante sem o diagnóstico?",
questiona Rosana. Para a coordenadora pedagógica, é preciso
mudar a visão da indisciplina. "Indisciplina, muitas vezes,
não é desobediência, mas denúncia. Não dá para querer que
as crianças tenham "corpos dóceis", como afirmava [o filósofo
francês Michel] Foucault. A disciplina do corpo é também a
da cabeça, forma o submisso. No conselho de classe, passam
os alunos quietos, que fazem as atividades esperadas.
Todo mundo fala de disciplina, não de aprendizado. Indisciplina
existe quando você não está cumprindo o papel da escola, que
é o de transformar informação em conhecimento", conclui ela.
Professora há oito anos, Maria de Fátima Bezerra, 31, faz
mestrado em língua francesa na USP e dá aulas de português
na mesma escola em que Rosana é coordenadora. Ela também sente
o descontentamento dos colegas, mas vê um pouco de exagero
nessa postura. "É preciso ter flexibilidade em sala, entender
um pouco mais os anseios do aluno. Ele confia no professor
e tanto se interessa pela aula quanto em falar das suas dúvidas,
dos seus problemas, de suas emoções. Tem dia que você prepara
a aula e eles querem discutir outra coisa, trazer para a realidade.
No dia 7 de setembro, a turma da quinta série preferiu abordar
o momento político do que pesquisar no dicionário o conteúdo
do hino nacional. Aquele trecho "seu futuro espelha essa grandeza"
provocou muitas reflexões. Eles sabem que são o futuro e acreditam
nele, acham que o Brasil vai mudar para melhor."
A constatação de Maria de Fátima vai de encontro à pesquisa
recente "Valores dos Jovens de São Paulo", realizada pelo
ISME (Instituto SM para a Qualidade Educativa) e coordenada
pelos pesquisadores Yves de La Taille e Elizabeth Harkot-de-La-Taille.
Ela ouviu 5.160 alunos de instituições públicas e privadas
de ensino médio da Grande São Paulo. Os resultados surpreendem:
89,4% disseram que a escola é importante para o seu desenvolvimento
pessoal e 76,8% avaliaram positivamente a escola, qualificando-a
como "um lugar no qual se ensinam os problemas da sociedade
e a forma de enfrentá-los". Por que, então, a percepção do
professor é diferente? "Existe um diálogo de surdos entre
as duas gerações", avalia Yves de La Taille, que também é
professor livre-docente do Instituto de Psicologia da USP.
"As crianças têm noção de que aquilo que a escola ensina tem
relação com o desenvolvimento delas e da sociedade, mas, talvez,
os professores não consigam estabelecer claramente esse vínculo."
Na opinião do pesquisador, o professor está muito isolado,
sobretudo na escola particular. "É como se o problema de disciplina
fosse dele, quando, na verdade, é da sociedade. A escola virou
comércio, formadora de conteúdo para o vestibular.
A maioria dos professores não vai sacrificar um minuto das
aulas de ciências, português ou matemática para tratar das
disciplinas transversais, como cidadania. Esse é um grande
erro. É muito mais perigoso para a humanidade uma pessoa competente
em matemática sem ética do que o contrário. Tenho absoluta
certeza de que o professor que fizer esse link será tratado
de forma diferenciada. Será autoridade em sala de aula e não
entregador de disque-conhecimento", alerta De La Taille.
Aos 24 anos, Lucas Pereira de Mendonça faz parte do universo
ínfimo de 2,9% de jovens ingressantes na carreira de professor.
Estudante de física na USP, ele dá aulas há três anos e meio
para adolescentes de primeiro a terceiro anos do ensino médio
em duas escolas particulares, uma em Cotia (Grande São Paulo),
outra em São Paulo. Lucas fazia meteorologia, mas desistiu
da profissão porque não se interessava pelo tema. Por isso,
entende a importância de seduzir o aluno pelo conteúdo e pela
forma de transmiti-lo. Declara-se um apaixonado pelo magistério.
"A sala de aula é o lugar onde você pode ser uma pessoa pública,
pode ter importância para esse mundo aí fora.
Você sente que pode fazer algo por outra pessoa para conseguir
transformá-la", relata. Ele explica que faz acordos com os
alunos para dar as aulas. "Tento democratizar a sala de aula
fazendo pactos com os alunos no primeiro dia de aula, determinando
o tempo em que eles falam, em que eu falo, o tempo das perguntas
e das discussões entre eles. A indisciplina pode acontecer,
mas, se você tiver uma boa aula preparada e eles perceberem
que você domina a matéria e os respeita, também vão te respeitar.
Sinto que, apesar da minha pouca idade, consigo ser ouvido",
completa o professor de física. Lucas fala de outras coisas
fora de moda, como a postura do professor em sala de aula,
que deve "transmitir honra, ética e dignidade" e em "botar
o coração" naquilo que se faz. Quantos, agora, esboçam um
sorriso irônico diante do sonho romântico do jovem professor?
Dos colegas mais velhos, ele diz que já se cansou de ouvir:
"Calma, um dia você vai desanimar também". Lucas reage dizendo
que a cada dia se sente ainda mais empolgado.
Assim como ele, Flavia Merigue, 23, estudante de letras e
professora voluntária num projeto da Faculdade de Educação
da USP, continua confiante no seu futuro profissional. "Sinto
uma vontade grande de discutir idéias, criar dúvidas e fazer
com que os alunos reflitam. Sei que tenho uma responsabilidade
grande: passar valores e noções de como melhorar o mundo em
que vivem", entusiasma-se.
DENISE RIBEIRO
da Folha de S.Paulo
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