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Sandra
Corveloni, premiada como a melhor atriz em Cannes, lembra-se
com carinho de uma professora da primeira série, chamada
Dona Gema, que dava ares de festa para a escola. Ensinava
cantigas de roda, contava histórias tiradas de livros
coloridos, convertia papel e cola em peças de arte.
Durante toda a sua trajetória
em escola pública, Sandra sempre participou do que
lhe ofereciam: grêmio, dança, coral, gincana,
teatro, jornal. E esse gosto que a garota descobriu pela arte
e pela escola são atribuídos à Dona Gema.
Todo esse entusiasmo cultural dava-lhe
satisfação, mas dificilmente seria fonte de
renda. Ingressou num curso técnico gratuito do Senai
e, depois, entrou numa faculdade de engenharia, algo que nem
remotamente seria acessível a qualquer pessoa de sua
família. Não era o suficiente. Podia ter parado
aí, com salário, carteira assinada, e já
estaria muito bem.
Sua paixão estava na carreira
de atriz, descoberta desde que participou de oficinas gratuitas
no Sesc. A ex-futura engenheira química preferiu o
palco e partiu para estudar teatro no Tuca. Fez de tudo para
sobreviver. Até animação de festinha
infantil. Possivelmente ser a estrela reconhecida em Cannes
era uma possibilidade tão remota quanto seu avô,
autodidata, ter sido tratado como doutor (leia mais sobre
o avô no texto abaixo).
Além do reconhecimento
artístico, o prêmio serve como condecoração
ao prazer de se reinventar de uma menina que ganhou holofotes
em Cannes, mas cujo futuro começou a ser escrito com
palavras científicas de um obscuro livro de veterinária.
leia a coluna na íntegra:
Uma estrela
na linha de passe
Nenhuma atriz brasileira veio de tão baixo e subiu
tão alto quanto Sandra Corveloni, eleita melhor atriz
em Cannes
O desfecho previsível da vida
de Sandra Corveloni seria a derrota profissional -migrante,
filha de pais quase sem escolaridade, moradora da periferia
de São Paulo e estudante de escola pública.
Mas nenhuma atriz brasileira veio de tão baixo e subiu
tão alto em reconhecimento internacional. Como ela
ultrapassou tantas barreiras para ser eleita, na semana passada,
a melhor atriz no Festival de Cannes?
Apenas o seu talento não explicaria
esse desfecho. Nem a habilidade de seus diretores, Walter
Salles e Daniela Thomas, no filme "Linha de Passe",
em que Sandra é uma mãe enfrentando as agruras
da periferia, onde a falta de perspectiva transforma o futebol
num dos poucos sonhos disponíveis aos jovens. Para
ir tão longe, Sandra precisou colocar-se, na própria
vida, na linha de passe desde menina, ela precisou se meter
num roteiro de aprendizados.
O caso dela me levou a tentar comprovar
o que tenho observado em personagens periféricos que
se destacam profissionalmente: além do talento e da
força de vontade acima da média, existem sempre
fortes referências familiares associadas ao prazer ou
à importância do aprender.
Pedi-lhe que contasse sobre as figuras
marcantes de sua vida. Sobressaiu a imagem do avô, José
Crepaldi, agricultor, pobre, que pouco freqüentou a escola,
mas vivia agarrado a um grosso livro de veterinária.
"O livro e meu avô eram quase inseparáveis.
Era a sua bíblia." Lia e observava, curioso, como
os veterinários profissionais tratavam os animais.
Gravava o nome dos remédios e dos tratamentos.
Aquele agricultor, mesmo sem escolaridade,
virou um veterinário autodidata e começou a
ganhar alguns trocados porque era chamado para tratar de animais.
A menina carregou para sempre a imagem do avô, em deleite,
agarrado ao livro esgarçado. O velho morreu pobre -mas
realizado.
Clarice, a mãe de Sandra, nunca
foi à escola, mas também trouxe de casa - ela
já observava o pai encantado com a veterinária-
a importância do conhecimento. Do seu jeito, ela percorreu
a mesma trajetória do prazer em aprender: inventava
receitas, criava modelos de roupas ou construía móveis.
"Minha mãe sempre tinha uma história para
contar de alguma coisa que ela tinha feito." Nem que
fosse a adaptação de uma receita de bolo que
ouvira no rádio ou na televisão.
Exigia que a filha estudasse e que
as lições, que lhe eram incompreensíveis,
estivessem bem-feitas. Sandra não precisava receber
cobranças. Lembra-se de uma professora da primeira
série, chamada Dona Gema, que dava ares de festa para
a escola. Ensinava cantigas de roda, contava histórias
tiradas de livros coloridos, convertia papel e cola em peças
de arte. Durante toda a sua trajetória em escola pública,
sempre participou do que lhe ofereciam: grêmio, dança,
coral, gincana, teatro, jornal.
Todo esse entusiasmo cultural dava-lhe
satisfação, mas dificilmente seria fonte de
renda. Ingressou num curso técnico gratuito do Senai
e, depois, entrou numa faculdade de engenharia, algo que nem
remotamente seria acessível a qualquer pessoa de sua
família. Não era o suficiente. Podia ter parado
aí, com salário, carteira assinada, e já
estaria muito bem.
Sua paixão estava na carreira
de atriz, descoberta desde que participou de oficinas gratuitas
no Sesc. A ex-futura engenheira química preferiu o
palco e partiu para estudar teatro no Tuca. Fez de tudo para
sobreviver. Até animação de festinha
infantil. Possivelmente ser a estrela reconhecida em Cannes
era, até a semana, passada, uma possibilidade tão
remota quanto seu avô, autodidata, ter sido tratado
como doutor.
Além do reconhecimento artístico,
o prêmio serve como condecoração ao prazer
de se reinventar de uma menina que ganhou holofotes em Cannes,
mas cujo futuro começou a ser escrito com palavras
científicas de um obscuro livro de veterinária.
PS- Para participar do filme "Linha de Passe", Sandra
teve de voltar a morar na periferia. Viu e sentiu a desesperança
dos jovens, fora da linha de passe, morando em ambientes esgarçados
- estão mais próximos da linha de tiro. Isso
ajuda a explicar o inferno das escolas, onde professores são
vítimas da violência cotidiana de tentar ensinar
indivíduos sem perspectiva, muitos dos quais nunca
viram um adulto perseguindo um projeto e apostando no conhecimento.
Como estamos metidos numa espécie de guerra civil,
reflexo da marginalidade juvenil, o caso de Sandra é
um roteiro que mostra que o combate à violência
começa com a possibilidade de que cada indivíduo
se sinta capaz de descobrir um talento, o que começa
na família e prossegue na escola.
Coluna originalmente publicada na Folha
de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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