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02/05/2008
Carta da semana
Eu Não Sou Cachorro, Não
"Eu ainda consigo
ficar perplexo! Sempre. Sou mesmo um palhaço. Passo
pela marginal e vejo o rio. Rio? Como assim? Para mim, rio
é coisa viva. Que corre, tem peixes, dá vontade
de lavar o rosto em dia quente. Esse trecho do Tietê
é qualquer coisa, menos um rio.
Andando pelo centro, pela Sé, XV de Novembro, a multidão
passa como se não houvesse nada, como se tudo estivesse
normal. E eu ainda fico perplexo. Cola, para mim, é
coisa de colar, não de cheirar. E criança, coisa
de brincar. Não de ficar ali, jogada, quase não
criança.
E foi assim, completamente pasmo, que li a reportagem de capa
da Revista da Folha do dia 23 de março.
O título: Pede pra sair. A matéria é
sobre palestras e oficinas motivacionais realizadas por um
ex-capitão do Bope (Batalhão de Operações
Especiais), e seu sócio, o auto intitulado Vendedor
Pitt Bull. Alavancados pelo sucesso do filme Tropa de Elite,
o Caveira (nome pelo qual são chamados os soldados
desse batalhão) e o Vendedor Pitt Bull expandiram seus
negócios. Pregam que são gurus de executivos.
... Rio que não é rio,
cola que não é cola, crianças quase não
crianças, e agora caveiras e cachorros fazendo palestras.
Que mundo é esse? Eu peço pra sair...
A reportagem é de dar arrepios,
desses que a gente tem quando vê uma caveira pela frente.
Prega-se, nestas palestras, que o mundo se divide em uma raça
superior e uma raça inferior. Os Caveiras e os Invertebrados.
A frase Pede pra Sair, título da matéria, é
usada para incitar os invertebrados - fracos e sem condição
de agüentar pressão - a pedir demissão.
Arrepios, arrepios...
Alguns parágrafos, de suor e medo, mais adiante, e
me deparo com uma outra aberração. Os funcionários
de uma empresa, “sensibilizados” por uma dessas
palestras, passaram a se chamar só por números,
como se fossem aspirantes do batalhão. Acreditem...
É a materialização do insuportável
“disque 1 para aquilo, disque 2 para aquilo outro...”
As pessoas estão literalmente virando números.
Será que não lhes passa pela cabeça,
o perigo de tornarem-se um Zero a esquerda. Quem somos nós
sem nossa identidade?
Ainda sob efeito do golpe leio que “temos que tirar
as pessoas da zona de conforto”. Caio para trás.
(Devo ser invertebrado). Estão confundindo estar confortável
com estar acomodado. Qual o problema com o conforto. Ele não
é problema, é solução. Pessoas
felizes produzem mais. Defendem a causa. Se empenham. Se dedicam.
Vestem a camisa. Pedem pra ficar. Não pra sair.
Todos nós sabemos que o mundo corporativo é
essencialmente competitivo. Mas não podemos confundir
competição com guerra. Estes treinamentos que
buscam resultados a qualquer custo – resultados imediatos
e nada perenes - se assemelham ao uso de anabolizantes, com
inevitáveis efeitos colaterais.
Não há meta, nem objetivos a serem alcançados
que justifiquem um treinamento militar, que anule o ser humano
e desumanize as relações. E relações
dilaceradas não estabelecem vínculos, seja dentro
ou fora da empresa.
Continuo lendo. Perplexo. As platéias são levadas
a gritar bordões. Bordões não, bordoadas.
Gritos literalmente de guerra: “Eu sou caveira! Missão
dada é missão cumprida”
E chamam isso de motivação. E eu rio, Tietê,
para não chorar. Fazer uma platéia ficar gritando
e repetindo palavras de ordem, não é educar.
É adestrar. Verbo, aliás, bem adequado àqueles
que se auto definem como pitt bulls, e que pensam que suas
platéias são matilhas.
Waldique Soriano, meu velho... Você faz muita falta
nesse mercado. E como faz... Até vejo a convenção
lotada e todos cantando com você “Eu não
sou cachorro não, pra viver tão maltratado!”
Grande Waldique. Você é que é o verdadeiro
guru. Porque nós não somos cachorro, não.
E também não somos caveira. Além dos
ossos, temos carne, sangue, e coração. Igualzinho
aos clientes. Aos tão almejados e disputados clientes.
Pedras preciosas do mundo corporativo. E os clientes têm
coração e querem ser tratados com toda a humanidade.
Com respeito, com exclusividade como se fossem – e são
– realmente únicos. Não apenas mais um.
Querem entrar na loja, na assistência técnica,
na fabrica, no escritório, e ver que existe gente que
lhes olha nos olhos, de verdade. Um simples copo d´água
pode mudar o comportamento dessa pedra preciosa pra sempre.
Um pequeno gesto pode torná-lo fiel. Porque gente -
gente, não número - gosta de ser bem tratado.
Gosta de poder confiar em outra gente não número.
Gosta de gentilezas sinceras e não um manual de bons
tratos. Gosta de ser ouvido em suas necessidades e não
de ser classificado como um protocolo. Precisa ouvir voz de
gente não de máquina.
E o bom trato, este sincero bom trato, para poder chegar ao
cliente, tem que ser exercitado dentro da empresa, no dia-a-dia.
Como me disse o Sr. Chu, presidente
da Samsung, “o exemplo tem que vir de cima, como uma
cachoeira”. Esta imagem é um hai kai. Simples
e profunda. Basta alimentar a cachoeira do bom trato e da
humanidade. Funcionários felizes atraem clientes fiéis,
que trazem consigo a tão boa e desejada prosperidade.
Em suma, depois sumo: fazer bem ao outro, é o atalho
mais curto para fazer bem ao mundo. E fazer bem ao mundo,
é um grande negócio."
Cláudio Thebas - claudiothebas@uol.com.br
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