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Flávia
Oliveira Medina, 24 anos, filha de uma faxineira, conseguiu
bolsa para cursar uma faculdade de direito. Apostava na possibilidade
de um diploma na parede para que tivesse um destino melhor
do que o de sua mãe - até ser presa, na semana
passada, em São Paulo, acusada de participar de um
sequestro.
Mãe
e filha frequentavam a mesma universidade. Tão próximas
fisicamente, mas tão distantes socialmente: Flávia
estudava nas salas que eram limpas pela mãe.
O caso da ex-futura advogada, presa sob acusação
de sequestro, é uma síntese notável da
torrente de números apresentados, na segunda-feira,
pelo IBGE sobre a evolução social do Brasil
no século 20 - uma torrente que, dias depois, se avolumou
com mais dados sobre a qualidade de vida nos municípios.
A universitária serve de argumento para os otimistas.
Não é pouca coisa, afinal, uma filha de faxineira
chegar à faculdade. Há cem anos, ostentar um
diploma de ensino superior era um privilégio de raríssimos
homens - e de nenhuma mulher- das famílias mais abastadas.
Mas o
caso também pode sustentar uma visão pessimista:
o nível de marginalização metropolitana
é tamanho que produz universitárias capazes
de participar de uma quadrilha de sequestradores - mesmo cursando
uma faculdade que, em tese, deveria ensinar o respeito às
leis.
A pesquisa do IBGE informa que, no começo do século,
quando a expectativa de vida do brasileiro girava em torno
dos 33 anos - não tão diferente assim da idade
de Flávia -, a taxa de analfabetismo era de 65% da
população com mais de 15 anos.
É
evidente que, se examinarmos a questão do ponto de
vista do tempo, diremos, sem hesitar, que houve uma notável
melhora, afinal, o analfabetismo é hoje de 13%.
É,
de fato, extraordinária a velocidade das matrículas
escolares no país -a tal ponto que Flávia é
mais um entre tantos milhões de brasileiros de famílias
pobres que pularam a barreira do ensino médio e chegaram
à faculdade.
Se condenada, ela vai engrossar a estatística de presos
que passaram pela faculdade; é o caso de 8%, em média,
dos presos de São Paulo.
Proporcionalmente,
encontra-se numa penitenciária de São Paulo
ou do Rio muito mais gente com diploma do que na elite brasileira
no começo do século passado. Entre os presos,
quase 20% têm ensino médio completo ou incompleto.
Aliás, a taxa de analfabetismo nos presídios
é de 11%, inferior ao índice brasileiro atual.
Traduzindo,
temos o seguinte: em termos de escolaridade, a elite brasileira
das primeiras décadas do século passado era
um bando de analfabetos e selvagens em comparação
com os delinquentes hoje encarcerados.
Tal comparação estapafúrdia recomenda
que se encarem com cautela os números dos avanços
de nossos indicadores sociais. As demandas que existem hoje
criaram novas categorias de "analfabetos". É
gente que estuda, até chega à faculdade, mas
cujo conhecimento não serve para lidar com os códigos
contemporâneos.
Um exemplo
das novas demandas: cada vaga de trainee nas boas empresas
é disputada por 700 candidatos, com exigências
que vão desde o conhecimento de inglês, de informática
e de língua portuguesa, entre outros, até capacidade
de trabalhar em grupo, liderança, criatividade -e por
aí vai. Isso faz o vestibular para as faculdades mais
concorridas parecer uma brincadeira.
Nossa universitária presa ajuda a explicar mais um
lote de estatísticas divulgadas na sexta-feira pelo
Pnud (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento)
em parceria com o Ipea -a exemplo do IBGE, constatou-se que,
no geral, a qualidade de vida nos municípios brasileiros
melhorou.
Olhados
mais detidamente, os números mostram que, nas regiões
metropolitanas (São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte,
Porto Alegre, Recife e Salvador), a pobreza aumentou e as
cidades apresentaram queda no ranking de qualidade de vida
devido ao desemprego crescente.
São justamente essas regiões metropolitanas,
mais escolarizadas e tensas, que geram tipos como Flávia,
capazes de sonhar com um diploma de bacharel e de participar
de uma quadrilha.
Ela diz
mais sobre o futuro do país, por revelar o barril de
pólvora das metrópoles, do que todas as estatísticas
sociais.
PS - Apesar da violência, a partir do próximo
ano haverá pelo menos mais um motivo para visitar São
Paulo -e graças a um formidável gesto de civilidade.
A maior coleção individual de arte brasileira
pertence hoje a Paulina Nemirovsky. O acervo será doado
e fará parte da coleção permanente de
um museu, a ser instalado no prédio, já reformado,
do Dops, atualmente parte da Secretaria Estadual da Cultura.
Se Flávia
condensa a marginalidade, a doação do acervo
condensa a civilidade. A doação foi feita porque
a família achou que aquele tesouro deveria ser visto
por todos e para sempre, a começar das crianças.
O próprio local para onde vão as obras é
simbólico: o lugar onde, até há pouco
tempo, se praticava a tortura vai mostrar algumas das imagens
mais belas produzidas por brasileiros. Alguns deles, no passado,
fichados no próprio Dops.
O Brasil que produz Flávias
é o mesmo que transforma centros de tortura em museus.
Resta saber quem vai imperar - se a beleza da arte ou a violência
dos sequestros.
Coluna
originalmente publicada no jornal Folha de S. Paulo,
aos domingos.
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