|
Por que as crianças e jovens
não estão aprendendo nas escolas públicas? Por que as escolas
públicas não estão ensinando às crianças e jovens com suficiência?
Tendo como pano de fundo a herança de um sistema político
e econômico gerador de injustiça social, podemos considerar
alguns elementos importantes para analisar essas questões
que são faces de uma mesma moeda: a baixa qualidade dos resultados
dos sistemas educacionais no Brasil, muito especialmente do
ensino público.
É comum atribuir-se os baixos resultados da escola pública
ao nível sócio-econômico das famílias que condenaria o aluno
pobre a fracassar na escola.
Outra visão atribui às diferenças entre redes de ensino a
responsabilidade pela qualidade da aprendizagem dos alunos.
Daí, portanto, a expectativa de que os alunos da rede pública
serem mais “atrasados” do que os da rede particular e do desempenho
inferior na rede pública do profissional que é também professor
da rede particular.
Outra visão, ainda, considera a baixa renda dos estados e
do país como um fator determinante da baixa qualidade dos
sistemas educativos.
Analisando-se os dados do SAEB é possível explicar o desempenho
escolar considerando essas (e outras) ordens de fatores. Seja
o empobrecimento de países subdesenvolvidos, seja a escola
fragilizada enquanto instituição ou, ainda, os problemas que
afetam os alunos pobres e suas famílias, todos são elementos
passíveis de análise. Ao tempo em que são evidentes as correlações
entre desempenho dos alunos e cada um desses aspectos, constata-se
também que nenhum deles é absoluto e as relações estabelecidas
não são lineares.
Se, por um lado, existem fatores extra-escolares que explicam
uma parte considerável do desempenho escolar (existe, sem
dúvida, uma forte correlação entre o desempenho do aluno e
a condição sócio-econômica de sua família), por outro lado
não se pode atribuir à pobreza do país ou dos alunos o fato
da maioria deles não conseguir um desempenho mínimo de acordo
com padrões estabelecidos por série. Tem-se exemplos de alunos
em condições sócio-econômicas desfavoráveis que alcançam bons
resultados. Por outro lado, se a fragilidade da escola pública
é um fator relevante, os dados do SAEB mostram que existem
consideráveis diferenças entre escolas da mesma rede. E essa
diferença nos resultados pode ser também constatada entre
países que se assemelham pela condição econômica precária.
Na verdade, apesar de todos esses fatores terem relevância
na rede de interações que geram os produtos dos sistemas educacionais
e das escolas, nenhum deles tem, em si, um caráter impeditivo
do sucesso. Portanto, a condição econômica desfavorecida não
conduz necessariamente os alunos ao fracasso. Isto não minimiza
o grande desafio que representa a construção de sistemas públicos
de qualidade, mas põe em cheque uma cultura de fracasso escolar
que a priori penaliza grande parte da população de crianças
e jovens.
Direcionando o foco da análise sobre a qualidade da educação
para as questões intra-escolares, depara-se com um dos mais
fortes elementos a que se atribui a responsabilidade pelos
resultados de aprendizagem dos alunos (aqui entende-se resultado
de aprendizagem como a principal referência de qualidade educacional):
o desempenho do professor.
O discurso sobre a influência do professor na qualidade educacional
oscila entre duas grandes tendências. Por um lado, o papel
do professor dilui-se no contexto de muitas dificuldades tão
propaladas no meio educacional. Ao professor (sujeito) sobrepõem-se
os baixos salários, as precárias condições de trabalho, a
falta de reconhecimento, a impossibilidade de uma carreira
motivada. O professor, portanto, não teria as mínimas condições
objetivas de responder com competência às demandas de seu
ofício. Em outras palavras, mediante tais condições desfavoráveis,
não seria factível ter expectativas positivas acerca do desempenho
do professor.
Por outro lado, credita-se ao professor (e ao seu talento,
dedicação, vocação) a salvação do aluno. Discursos como “tudo
depende do professor”, ou ainda, “se o professor for bom,
o resultado do aluno é satisfatório” estão, freqüentemente,
“na boca” de dirigentes de sistemas, de diretores de escolas,
de professores das universidades. “Ser bom” é entendido como
uma particularidade, não havendo escolha para os que não são
contemplados com este atributo.
A imagem do professor também oscila, portanto, entre o “coitadinho”
a quem os sistemas impedem de ser competentes; e o “vilão”
que com seu despreparo, descompromisso e desmotivação condena
o aluno ao fracasso (se ele fosse bom, tudo estaria resolvido).
Que outro fio (de Ariadne?) pode-se puxar para evitar essas
visões que terminam por configurar-se em armadilhas imobilizadoras
posto que, de um jeito ou de outro, não há muito a se fazer.
É verdade que existem professores a quem as condições externas
desfavoráveis parecem não afetar fortemente. Ou ainda, é como
se esses professores demonstrem a capacidade de aproveitar
bem os insumos oferecidos, o que para a maioria parece tão
insuficiente. Quase que independente de onde estejam, apresentam
resultados satisfatórios, aferidos pela medida de aprendizagem
dos alunos.
Mas o que revela o panorama educacional? Temos quase 100%
de crianças e jovens na escola, mas eles não estão aprendendo.
O índice de abandono diminuiu, mas o absenteísmo é altíssimo.
Os indicadores mostram um movimento de correção de fluxo,
mas a principal torneira de onde jorra o problema está aberta
porque os alunos não estão se alfabetizando na idade certa.
A verdade está aí, diante dos olhos, dentro das escolas, revelada
nos resultados das avaliações nacionais, nos indicadores sócio-econômicos.
A verdade está na “normalidade” de uma criança de 6 anos terminar
o ano letivo sem realizar os primeiros atos de leitura e escrita
com autonomia e continuar assim na 1ª, 2ª, 3ª, 4ª série do
ensino fundamental, comprometendo irreversivelmente o seu
processo de escolarização.
A verdade está na “normalidade” de um aluno de 8ª série ler
e escrever como um aluno de 4ª e, ainda assim, num nível abaixo
do crítico. A verdade está na absoluta falta de competitividade
do aluno de 3º ano médio das escolas públicas nos vestibulares
e em outros exames que lhe abririam portas para o seu crescimento
intelectual e social.
Colado a essa realidade, pode-se construir com brevidade um
perfil de um professor que revela um desconhecimento (no mínimo,
parcial) do próprio objeto de ensino, assim como dos fundamentos
pedagógicos que alicerçam o processo de ensino/aprendizagem;
sendo ainda detentor de uma formação geral sofrível, além
de outras insuficiências.
No entanto, um sistema não pode ser refém das singularidades
dos “bons” professores. Ainda que eles possam exercer uma
influência benéfica aos seus pares imediatos, não são esses
talentos que garantirão a elevação da qualidade da educação
nos sistemas públicos. Nem tampouco deve render-se à suposta
“incompetência funcional” de professores, como se somente
dela fosse a responsabilidade da “conta a pagar” por tão profundas
marcas de ineficiência dos sistemas educacionais públicos
no Brasil.
É absolutamente imprescindível que se reafirme a importância
do papel do professor como protagonista da relação de ensino-aprendizagem.
É o professor que “atua” o projeto pedagógico, através dos
procedimentos metodológicos de ensino, acompanhamento e avaliação.
É o professor que “fala” o mundo durante as aulas e pode,
assim, contribuir muitíssimo para a ampliação das perspectivas
de visão do aluno. Em certa medida, é também ao professor
que cabe a mobilização do desejo do outro (aprendiz); e, no
final das contas, aprende-se pelo desejo e por amor a alguém.
No entanto, é a vez de inseri-lo no circuito mais amplo que
compõe os sistemas educacionais públicos. Chama-se “à ordem”
todas as instâncias envolvidas e que respondem (cada uma por
seu quinhão) pela absoluta falta de responsabilização pelos
resultados do ensino público: dirigentes políticos, gestores,
professores, pais e instituições formadoras de profissionais.
Ao tempo em que identifica-se o professor (e seu desempenho)
como um elo dessa cadeia, cuida-se para não perder a dimensão
do professor/sujeito, que deverá responder pela parte que
lhe cabe. Esse seria, então, o primeiro passo (se fosse factível
estabelecer essa sucessividade) para uma ação de valorização
do professor: a responsabilização.
O sentido de valorização do professor está diretamente vinculado
aos resultados obtidos em seu trabalho. Isso requer, por parte
da gestão, o estabelecimento de metas claras, ancoradas em
prioridades bem definidas.
Estando o professor ciente dos resultados esperados (inclusive
por ele mesmo) é necessário que lhe sejam garantidos os insumos.
Definir metas “por decreto” e deixá-los à própria sorte resultaria
somente em frustração.
Dentre os insumos importantes, merece ênfase o estabelecimento
de processos de capacitação bem focados nos programas de ensino,
a garantia de materiais necessários à implementação da proposta
pedagógica e a construção de espaços de valorização e socialização
das boas práticas. É muito importante a atenção para que os
programas de capacitação não se transformem em grande ralos
de escoamento de recursos, na medida em que não geram impactos
positivos nos resultados. A capacitação deve ter um foco preciso
e deve estar organicamente vinculada a processos de avaliação
eficientes.
O firme acompanhamento do processo pedagógico pela gestão
escolar e a avaliação dos resultados através de processos
de avaliação externa são imprescindíveis para a evolução da
qualidade do processo educacional. Num contexto em que as
metas a serem alcançadas estão na pauta da escola e do sistema,
verifica-se que o acompanhamento (composto de apoios e cobranças)
não mais é investido de uma conotação de desconfortável (e
injusta!) cobrança. Isto é (re)significado pelo professor,
que passa a traduzi-lo como elemento de valorização.
A firme cobrança de metas deve existir e a falta de compromisso
do profissional com suas tarefas é inegociável. No entanto,
o respeito pelo fato de que o professor/sujeito trilha o seu
próprio caminho de aprendizagem é fundamental para transmitir
a confiança necessária aos processos de crescimento. Pessoas
necessitam disso para crescer.
Os incentivos, sejam eles financeiros e/ou também de outras
ordens, são recursos importantes que o sistema pode utilizar
para ritualizar o reconhecimento, e para reafirmar o compromisso
da gestão com as prioridades. No entanto, defende-se que a
regulação dos incentivos esteja em estreita vinculação com
as metas a serem alcançadas. Os prêmios, em si, não têm potência
para mobilizar força interior, capacidade de superar adversidades
e motivação para crescer profissionalmente. É necessário também
uma força de outra ordem que, inclusive, mobilize a motivação
das pessoas para dar respostas dignas à comunidade que atendem.
A luta permanente por melhores salários é legítima, mas não
seria somente a elevação dos salários um elemento definidor
da melhoria da qualidade em educação.
Essas reflexões sobre o papel do professor/sujeito são relacionadas
a uma experiência em que foi possível constatar uma elevação
significativa da qualidade dos resultados de desempenho no
processo de alfabetização inicial de alunos da rede municipal
de Sobral-Ce. Considerando que não houve o advento de fatores
externos excepcionais (nenhuma revolução salarial no município,
por exemplo) restou-nos equacionar os fatores intervenientes
para responder à questão: de onde os professores tiraram a
capacidade para fazer os alunos aprenderem? Eles eram mais
ou menos os mesmos que atuavam no sistema que produzia o analfabetismo
dentro da escola.
Sendo impossível contar somente com os “bons” (eles não existem
em larga escala), o caminho foi investir na capacidade de
mobilização dos saberes e iniciativas de que as pessoas são
capazes quando desafiadas e apoiadas para alcançar metas.
A equação envolve uma ação de estruturação e fortalecimento
da gestão municipal e escolar, a garantia de processos de
avaliação externa permanentes e conseqüentes, a oferta de
qualificação profissional e de incentivos.
Se nos bancos das escolas públicas estão as crianças sujeitas
às condições mais desfavoráveis (herança de uma história de
injustiça social em nosso país e no mundo) os sistemas devem
responder com mais qualidade institucional, mais estímulo
à participação da família e mais compromisso político. Quanto
mais baixo o nível sócio-econômico dos alunos, mais a escola
é importante e pode ter um efeito fundamental em sua aprendizagem.
O professor, ancorado em uma gestão estruturada, torna-se
um elo valoroso nesta corrente. Nem naturalmente bom, nem
inexoravelmente mau, mas um sujeito capaz de mobilizar suas
energias e saberes para responder à tarefa que lhe cabe.
|