RIO DE JANEIRO (RJ) - Morro e asfalto
têm um encontro marcado na cozinha toda sexta-feira.
Na escola São Domingos, na zona sul carioca, mulheres
do abastado bairro do Leme se juntam a moradoras das favelas
do Chapéu Mangueira e Babilônia. Elas vestem
o avental, arregaçam as mangas e põem a mão
na massa. Aprendem a fazer pães, a reaproveitar alimentos,
e ainda trocam receitas. A aula dura a tarde toda. Algumas
já começam a transformar o aprendizado em fonte
de renda, vendendo os salgadinhos e doces que aprenderam a
fazer.
É pão recheado com lingüiça, bolo
de maracujá, doce de casca de banana. Mas a receita
que Edson Faria Garcia, 47 anos - morador do Chapéu
Mangueira e um dos poucos homens do grupo -, quer aprender
é a de panetone. Por um motivo bem prático.
Ele quer vendê-los na feirinha que a igreja Nossa Senhora
do Rosário promove todo domingo na escola e aumentar
sua renda para o Natal.
"Como o curso é gratuito e estou desempregado,
quero aprender uma coisa útil, como os pães.
Não digo que vou trabalhar numa padaria, mas até
em casa posso ganhar um dinheiro", planeja.
Edson vai seguir o caminho que a cozinheira Maria das Graças
Pinheiro, de 49 anos, já anda trilhando. Também
desempregada desde que a empresa em que trabalhava faliu,
Graça, que divide um apartamento no Leme com uma amiga,
tem se empenhado na venda de pães e panquecas por encomenda.
É um negócio ainda incipiente, mas tem quebrado
o maior galho na hora de pagar as contas do mês.
O objetivo da Padaria do Vovô é exatamente
esse. "Trata-se de um projeto voltado para a qualificação
profissional e inclusão social da terceira idade. E
é também uma das iniciativas da Casa Gourmet,
espaço em que as empresas Arno e Tefal oferecem cursos
gratuitos de gastronomia, etiqueta e artesanato ao consumidor",
explica Angela Willers, coordenadora da Casa Gourmet no Rio.
No Leme, porém, a padaria tem características
um tanto diferentes. Lá, o público-alvo não
é apenas a turma do asfalto acima dos 60 anos, mas
também, e principalmente, o pessoal das comunidades
da Babilônia e Chapéu Mangueira. E o curso, que
pela capacidade da cozinha se limita a oito alunos, se instalou
ali por iniciativa da associação de moradores
do bairro.
"Fiquei conhecendo o projeto num programa de televisão.
Achei bacana e tratei de entrar em contato, pedindo uma escola
daquelas aqui para o Leme. Um mês mais tarde, no começo
desse ano, estávamos dando início às
aulas na sede da associação de moradores (Amaleme),
na subida para a comunidade do Chapéu Mangueira",
conta Iracy Falcão, presidente da associação.
Como as instalações na sede da associação
não eram muito adequadas, há três meses,
o curso se mudou para a escola São Domingos, cedida
pela igreja Nossa Senhora do Rosário. "A Casa
Gourmet equipou o espaço com forno elétrico,
batedeira e liquidificador, e nos envia a professora, enquanto
empresas doam uma parte do material usado, como farinha de
trigo e leite. Mas o pessoal do Leme também se mobilizou.
Uma moradora doou um microondas, outra deu um fogão,
um terceiro deu a geladeira", explica Iracy.
Doce de Casca de Banana
Às sextas-feiras, os alunos e a professora Maria José
Ferreira dos Santos se reúnem em aulas das 14h às
18h. "Os pães produzidos aqui são degustados
na aula e o que sobra é vendido na feirinha de artesanato
que a igreja promove aos domingos. A renda é revertida
para a compra de material do curso", explica.
Cumprindo estágio na Casa Gourmet, Vera Goulart,
que aos 57 anos está no 4 º período de
Gastronomia da Universidade Estácio de Sá, tem
adorado a experiência de auxiliar Maria José
nas aulas. "Viemos somente para dar um curso de padaria,
mas passamos a ensinar também o reaproveitamento de
sobras de alimentos. O que amplia a possibilidade de um futuro
retorno financeiro", diz.
Mesmo morando na Barra da Tijuca (Zona Oeste), ela bem que
gostaria de continuar com este trabalho social. Seja no Leme
ou em qualquer comunidade a que seja convidada a dar aulas,
depois que terminar o estágio.
O reaproveitamento de alimentos costuma mesmo despertar
o maior interesse na turma. "A casca de banana, por exemplo,
dá um doce que ninguém diz que é feito
de casca. Fica uma bananada ótima. O de abacaxi com
casca é a mesma coisa. Basta passar tudo no liquidificador,
que a polpa dá até para fazer docinho de festa.
As empadinhas recheadas com talo de espinafre também
são boas", anima-se Iracy.
Mas há ainda as receitas trazidas pelos próprios
alunos. A cozinheira Graça, por exemplo, já
trouxe uma de doce de jiló. Ela jura que todo mundo
pensa que é de figo verde. "Fica igualzinho",
garante.
Com tudo o que já aprendeu, o vigia Severino Felismino
dos Santos, de 34 anos, tem feito o maior sucesso no prédio
em Copacabana onde trabalha. Os companheiros agora só
jantam depois que ele chega. E ele não se faz de rogado.
"Passo a semana toda no prédio, e os colegas ficam
me esperando para fazer o jantar. Só eu cozinho porque
eles adoram a minha comida. Isso é todo dia",
conta.
Paraibano, Severino chegou a ser ajudante de cozinha quando
desembarcou no Rio. Mas logo mudou de ramo e agora quem aproveita
seus conhecimentos na cozinha são os colegas e a família
que mora na Baixada Fluminense.
"Fim de semana, minha casa vira festa. Faço
rabada, mocotó com feijão branco, galinha caipira,
os pratos da minha terra, e também a lasanha e a coxinha
que aprendi no curso. Mesmo quando não chamo, os amigos
aparecem para comer", diz.
Orgulhoso de seus dotes culinários, Severino anda
recebendo até pedidos. "O pessoal lá do
prédio quer que eu faça um pão recheado
com lingüiça calabresa e queijo minas, que aprendi
aqui. Eles dizem que estão esperando ansiosos e vão
até fazer fila", gaba-se.
Troca-troca de receitas
O pão de que Severino fala é uma das receitas
trocadas entre os alunos. Quem a apresentou foi Iracy, que
já conhece o sucesso de seu pão à italiana.
"Procuro levar pratos fáceis e rápidos.
E esse pão é bem simples. Até chamei
de Amaleme", explica, numa referência à
associação de moradores do Leme.
Graça foi outra que aprendeu ali coisas que não
conhecia, como um bolo de maracujá diferente e "um
pudim de fubá da Marli", colega de curso que trouxe
uma receita de família. "Em vez de bolo, como
é mais comum, ele fica molhadinho, como um pudim mesmo.
É bem gostoso", elogia.
Esse troca-troca também termina sendo mais uma forma
de enriquecer certos pratos. "Quando uma aluna faz, procura
experimentar um temperinho aqui, outro lá. Se der certo,
passa adiante a dica e assim a receita vai ficando cada vez
melhor", explica Graça. Ela admite que é
daquelas que gostam de dar um toque pessoal ao que fazem.
"Altero para ficar do meu jeito", diz.
É bem verdade que nem todas as alunas tinham experiência
na cozinha. Caso da massagista Beatriz Moreira, de 54 anos,
que nunca soube cozinhar. Moradora do Leme, ela resolveu frequentar
as aulas da Padaria do Vovô exatamente para aprender
o básico.
"Assisto aulas há dois meses e estou adorando.
Ainda não posso dizer que cozinho. Tenho feito as receitas
somente aqui. Mas o curso tem sido bem útil. É
principalmente um incentivo para aprender, aberto a qualquer
pessoa, do morro ou da rua, sem distinção. É
uma oportunidade para muita gente. Acho que só falta
maior divulgação", resume Beatriz.
CLÁUDIO PEREIRA
do site Setor3
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