Há
mais de 500 anos, logo após a chegada de Cabral ao
Brasil, viviam por aqui cerca de 10 milhões de índios,
que falavam mais de 1.200 línguas diferentes. Hoje,
embora tenha se registrado crescimento da população
indígena nos últimos anos, vários povos
estão correndo o risco de extinção, principalmente
as pequenas tribos. Mais de 50% do total das comunidades indígenas
têm população inferior a 500 habitantes.
Atualmente, a população indígena está
calculada em apenas 550 mil pessoas. Sobraram menos de 180
línguas, sendo que somente 40 mil pessoas as dominam.
A grande parte dos grupos é monolíngüe.
Entretanto, a maioria fala também o português,
considerado a língua dos assuntos oficiais. Já
as línguas indígenas são, em maior ou
menor grau, consideradas como "gírias", "dialetos",
"sem gramática".
A imposição da educação e dos
modelos pedagógicos dos colonizadores portugueses podem
explicar esse processo de extinção da língua
indígena, que, muitas vezes, é considerada sem
utilidade pelas próprias comunidades. Neste contexto,
os novos modelos propostos para a educação indígena,
baseado na valorização e respeito à cultura
e aos costumes dos povos, surgem como reivindicação
dos índios que querem fazer da educação
não mais um modelo de imposição, mas
de crescimento e desenvolvimento.
A legislação a respeito do assunto avançou,
mas, na prática, as escolas indígenas estão
ainda longe de tornarem espaços efetivos para a promoção
da diversidade, com a qualidade devida para se garantir uma
educação diferenciada. "Antes, a sociedade
negava a cultura, as línguas e o direito dos índios
e, hoje, isso passa a ser reconhecido e valorizado. É
uma mudança qualitativa. Mas avançamos mais
no papel do que na ação. As políticas
muitas vezes são elaboradas, mas não há
recursos para concretizá-las ou não são
aplicadas em todas as escolas indígenas. Falta vontade
política", afirma, em entrevista ao portal setor3,
o antropólogo Luís Donisete Grupioni, do Núcleo
de História Indígena e do Indigenismo da Universidade
de São Paulo (USP), e um dos autores do livro "Educação
Escolar Indígena em Terra Brasilis, Tempo de Novo Descobrimento",
lançado no final de julho, em Porto Alegre (RS).
A publicação foi produzida pelo Instituto
Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase)
e as entidades parceiras do Grupo de Referência do Observatório
da Cidadania, base brasileira da rede Social Watch, com apoio
da Fundação Ford e da Novib, e procura discutir
e analisar a relação dos povos indígenas
com a escola, quais suas conquistas, perdas e mudanças.
Atualmente, de acordo com o Censo Escolar 2003, realizado
pelo Instituto de Pesquisas Educacionais (Inep) do Ministério
da Educação (MEC), há no país
2.079 escolas indígenas, com cerca de 147 mil estudantes.
A maioria (91%) está no ensino fundamental e concentrada
nas primeiras séries. Mais 61,9% das escolas estão
na região Norte do país. De todas as escolas,
1.059 estão vinculadas às secretarias municipais
de educação e 993 às secretarias estaduais.
Há ainda outras ligadas a projetos especiais e três
pertencem ao governo federal.
José Ribamar Bessa Freire, professor da Universidade
Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e da UNI-Rio e também
autor do livro, destaca na publicação que a
escola é algo recente na história destes povos,
trazida pelos jesuítas, na segunda metade do século
XVI. Antes disso, segundo ele, a reprodução
dos conhecimentos era realizada por outros meios. A educação
se baseava no "valor da tradição oral",
"o valor da ação", levando pessoas
adultas a envolverem crianças e adolescentes em suas
atividades e "o valor do exemplo". Toda a transmissão
de saberes era feita no intercâmbio cotidiano, com o
princípio de "todos educam todos".
Com a chegada dos portugueses, as primeiras escolas para
indígenas – e não de
indígenas – ignoraram as instituições
educativas dos índios, tendo como objetivo desarticular
a identidade das etnias, discriminando suas línguas
e culturas. Isso porque os portugueses consideravam que as
instituições e os fundamentos filosóficos
do sistema educacional europeu eram "universais"
e deviam ser incorporados. Desta forma, os saberes indígenas,
os processos próprios de aprendizagem, as concepções
pedagógicas de cada grupo ficaram excluídos
da sala de aula. A função da escola era fazer
com que estudantes indígenas desaprendessem suas culturas.
Luís Donisete Grupioni aponta no livro que a história
brasileira sempre colocou os povos indígenas como um
problema, criando políticas para que deixassem de ser
o que eram. Uma das estratégias utilizadas, destaca
Luís Donisete, foi a criação de internatos
indígenas com o intuito de promover a educação
formal das crianças. No local, as crianças eram
proibidas de se comunicar em suas línguas, obrigadas
a aprender o português e introduzidas ao aprendizado
de uma série de ofícios.
Tupinambá
A língua geral – cuja base era o tupinambá
– foi usada inicialmente na escola e na catequese até
meado do século XVIII. A partir de então, o
uso do português na escola se tornou obrigatório.
O choque cultural trouxe conseqüências trágicas
para as sociedades indígenas e suas culturas.
Durante o período colonial, analisa o professor José
Ribamar, foram realizados alguns levantamentos para saber
o quanto as escolas estavam desempenhando bem o seu papel.
De acordo com um estudo feito pelo padre Luiz da Grã,
no século XVI, sobre o destino da primeira turma de
estudantes dos jesuítas, dizia que "os alunos
andavam fugidos pelo mato". O poeta Antônio Gonçalves
Dias também realizou uma pesquisa, quando foi nomeado,
em 1861, pelo presidente da Província do Amazonas,
para o cargo de visitador das "Escolas Públicas
de Primeiras Letras de suas Freguesias".
O visitador encontrou vários problemas, como a precária
formação dos docentes, falta de infra-estrutura,
evasão escolar, além da dificuldade destes modelos
frente aos padrões de povoamento na Amazônia.
Na ocasião, o pesquisador verificou ainda que o sistema
de ensino não funcionava porque o português ensinado
não era a língua falada pelas comunidades locais.
Dez anos depois, a situação em outras localidades,
como Pará, Mato Grosso e Goiás, também
não eram diferentes.
José Ribamar aponta no seu texto que, nos séculos
XIX e XX, a escola destinada aos povos indígenas continuou
com a missão colonizadora e "civilizadora"
que lhe fora atribuída pela Coroa Portuguesa. Segundo
o professor, algumas leis, como a Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional (LDB/Lei 4.024/61) e, dez
anos depois, a reforma proporcionada pela Lei 5.692/71, acabaram
conservando e consolidando as políticas educativas
do período colonial, taxando o índio como uma
"categoria transitória, fadada à extinção".
De acordo com os autores, a mudança significativa
na política de educação indígena
ocorreu com a promulgação da Constituição
Federal de 1988, que reconheceu aos povos indígenas
o direito à diferença. Passou a ser dever do
Estado o oferecimento de uma educação escolar
bilíngüe e intercultural, que fortalecesse as
práticas socioculturais e a língua materna de
cada comunidade.
As leis subseqüentes ampliaram e detalharam a questão
indígena, como a Lei de Diretrizes e Bases da Educação
Nacional (Lei 9.394) e o Plano Nacional de Educação
(Lei 10.172). Elas apontam o direito dos povos indígenas
a uma educação diferenciada, com a valorização
dos conhecimentos e saberes milenares desses povos e pela
formação profissional indígena para a
atuação docente em suas aldeias.
Luís Donisete ressalta na publicação
que a educação escolar em terras indígenas
é um espaço em que estes povos têm buscado
o exercício de uma nova cidadania, resgatando valores,
práticas e histórias. Segundo ele, novos modelos
de escola indígena estão surgindo, pautados
por paradigmas de respeito ao pluralismo cultural e de valorização
das identidades étnicas.
O depoimento da professora Francisca Novantino, da cidade
de Pareci de Mato Grosso, ressalta este novo ideal. "Estamos
num momento importante da Educação Escolar Indígena,
num período de transição entre a escola
para índios imposta desde a colonização
e a nova escola indígena construída pelos índios".
Na opinião de Luís Donisete, a mobilização
dos povos indígenas e de suas organizações,
além do apoio de setores organizados da sociedade civil,
foram fundamentais para a conquista dos direitos indígenas
e das mudanças na área educacional. "Foi
a partir das experiências destas entidades com projetos
alternativos de educação que se gerou um novo
modelo incorporado gradativamente pelo Estado, virando política
pública. Nos últimos 10 anos, estas organizações
são chamadas para participar dos processos de formulações
destas ações", explica o antropólogo.
Entre 1980 e 2000, foram criadas cerca de 183 organizações
indígenas, só na região amazônica.
Formação de educadores
Hoje, a educação se tornou uma demanda
dos próprios povos indígenas, que querem uma
escola gerida por representantes das comunidades. Para isso,
a formação de professores indígenas se
torna fundamental. Segundo o Censo Escolar, cerca de 7 mil
educadores atuam nas escolas, sendo que 85% são indígenas.
No entanto, de acordo com Luís Donisete, há
ainda muitos obstáculos para a incorporação
dessas práticas, como a falta de estruturação
das secretarias de educação para o trabalho
com a educação indígena, não contando
nem com recursos financeiros, nem com equipe técnica
qualificada para ações de formação
profissional.
Há ainda outros impasses, como a falta de vontade
política. Muitas escolas são distantes das cidades
e não contam com recursos pedagógicos e didáticos.
"Em diversos locais, a sala de aula e o professor ficam
largados lá. As secretarias não estão
preparadas para trabalhar com estas questões e exportam
currículos e calendários escolares de escolas
da região, às vezes camponesas, sem respeitar
a diversidade local. Quando os professores não são
indígenas, muitas vezes são aqueles que tiveram
colocações baixas nos concursos públicos.
Ou seja, onde deveriam atuar professores mais preparados para
enfrentar uma realidade diferente, enviam professores menos
qualificados", comenta o antropólogo Luís
Donisete.
"As secretarias de educação têm
que cumprir a legislação. Têm que assumir
suas responsabilidades e oferecer uma educação
decente para os povos indígenas, porque isto está
garantido nas leis. Nós, professores indígenas,
não somos só aliados. Somos os cobradores do
cumprimento da política de educação indígena
para benefício das nossas comunidades", afirma
o professor Jerry Adriane Matalawê, Pataxó da
Bahia, em depoimento extraído do livro.
Segundo Luís Donisete, a escola tem hoje grande relevância
e destaque nas discussões do movimento indígena.
Os professores indígenas estão organizados em
associações e desenvolveram uma pauta de reivindicações
perante diferentes órgãos de governo.
As principais reivindicações dos professores
dizem respeito, principalmente, à formação
e apóio pedagógico. Muitos ainda não
se formaram nem no Ensino Médio e não tiveram
preparação específica para atuarem como
professores. Quando são envolvidos em algum programa
de capacitação, não há um aprofundamento
em temas e necessidades específicas da educação
indígena. Além disso, enfrentam problemas na
contratação. Como eles não têm
escolarização para participarem de concursos
públicos, seus contratos são irregulares e provisórios.
Na opinião do antropólogo, hoje, um dos principais
desafios para que a educação indígena
se consolide no país, é fazer com que as comunidades
indígenas assumam a sua educação e o
controle social sobre estas instituições, para
que não fiquem à margem da sua realidade. Outra
ação importante seria a criação
de políticas públicas consistentes e perenes,
em longo prazo, para que não se dissolvam com a mudança
de governos, por exemplo.
Luís Donisete acredita que a sociedade deve ficar
atenta às ações que podem ter uso político.
"Quando há participação indígena
no processo de decisão e construção das
ações é mais fácil delas terem
uma continuidade. Mas, se vão surtir efeito, isso também
vai depender da situação sóciopolítico
de cada comunidade, ou seja, como elas irão absorver
as ações. Os Centros de Educação
e Cultura Indígena (CECI), por exemplo, da prefeitura
de São Paulo, só terão impacto quando
os indígenas criarem um sentido para eles dentro de
sua realidade, senão, vai ser um Centro de Educação
Integrado (CEU), numa área indígena", destaca.
O professor José Ribamar ressalta no livro que muitas
escolas indígenas já mostraram sinais de relativa
eficácia escolar de acordo com os objetivos propostos
no projeto político-pedagógico, como é
o caso das escolas do Alto Rio Negro e, mais precisamente,
dos projetos desenvolvidos pelo Instituto Socioambiental com
a Federação das Organizações Indígenas
do rio Negro na área Baniwa e Tuyuka. Essas práticas
estão contidas também no livro, em que Marina
Kahn e Marta Azevedo, do Instituto Socioambiental, mostram
como é o processo de formação de uma
escola, desde a elaboração do projeto político-pedagógico
até as negociações com as autoridades.
DANIELE PRÓSPERO
do site setor3
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