O
relatório a seguir é fruto de um projeto piloto
que está sendo realizado no Hospital João Evangelista
relativo à avaliação de possíveis
transformações causadas pela introdução
do palhaço no universo psiquiátrico. Foram feitas
apenas duas intervenções, devendo ficar claro
que as avaliações são preliminares e
sujeitas a alterações.
As questões que emergiram destas primeiras intervenções
no Hospital João Evangelista são relativas aos
objetivos do trabalho. Seriam eles meramente artísticos,
ou algo mais? O palhaço possui qual função
dentro do hospital? Qual a forma de abordagem do paciente,
seria ela meramente cênica, com esquetes preparadas,
ou seria ela mais relacional, enfatizando a improvisação
e a pessoalidade? O palhaço poderia intervir sozinho
ou haveria necessidade da dupla?
Antes de ter qualquer certeza, algumas idéias surgiram
dando um maior norte ao projeto. Vai se esboçando no
horizonte o significado de que todo o empenho e todos os recursos
que estão sendo utilizados no projeto são no
sentido de uma maior socialização do paciente
psiquiátrico. Em suma, o projeto vai se mostrando como
uma forma de intervenção artística que
tende a valorizar a singularidade e a pessoalidade do paciente
psiquiátrico, colaborando com a sua reintegração
social.
O palhaço funciona, portanto, como o elemento catalizador
de transformações culturais e psicológicas,
que serão descriminadas com mais rigor a seguir, que
atingem não só o paciente como toda a estrutura
hospitalar. Utiliza, para isso, técnicas consagradas
da atividade clownesca, porém adaptadas a um contexto
peculiar da realidade de um hospital psiquiátrico.
Esta adaptação da comunicação
do palhaço refere-se a especificidades da situação
de surto psiquiátrico e de sofrimento mental.
Orientamos o nosso referencial teórico para a idéia
de que o surto psiquiátrico se encaixa numa situação
de paradoxo comunicacional, onde a expressão do sintoma
vem como solução para situações
de impossibilidade. Não negamos de nenhuma forma a
importância de outros fatores determinantes, inclusive
biológicos, para os transtornos psiquiátricos,
porém devemos entender categorialmente aonde estamos
atuando. E, no nosso compreender, atuamos no nível
comunicacional. Enfrentamos, portanto, situações
tanto de “saúde” como de “doença”
comunicacional, como será explicitado a seguir.
Os exemplos citados a seguir serão acompanhados das
soluções dadas pelos palhaços para as
situações comunicacionais enfrentadas.
1) Situações de “saúde”
comunicacional:
a. Compreensão imediata do arquétipo
do palhaço: Fomos recebidos imediatamente
como palhaços. Alguns pacientes, ao nos ver, iniciavam
imediatamente a rir, outros se aproximavam com muita tranqüilidade,
outros se afastavam com aquele pavor típico das crianças
que não gostam de palhaços, porém nossa
experiência foi de muita aceitação, tanto
por parte da equipe, como por parte dos pacientes.
SOLUÇÃO: A despeito das desconfirmações
trazidas por alguns pacientes, nos fiamos do espaço
cedido por outros que estavam envoltos pela presença
do palhaço e não saímos do papel;
b. Estabelecimento de ligação trasferencial
imediata: Alguns pacientes se aproximaram rapidamente
dos palhaços e os seguiram durante toda a intervenção,
inclusive lembrando dos mesmos na intervenção
seguinte, quando então tinham se passado alguns dias.
Muitos pacientes lembravam o nome dos palhaços. Aqui
ocorreu um fato curioso: na segunda intervenção,
eu, Frederico, não fui com figurino, para observar
de fora o Nando atuar. Porém, alguns pacientes me perguntavam
porquê eu não tinha vindo ao hospital vestido
de Gusmão;
SOLUÇÃO: Os pacientes mais
ligados e que criaram um vínculo mais imediato nos
acompanharam durante toda a intervenção sem
nenhuma rejeição de nossa parte, apenas quando
os mesmos estavam atrapalhando o foco, caso contrário
estaríamos sendo impermeáveis ao conflito comunicacional
e estaríamos estabelecendo uma comunicação
patológica;
c. Descriminação do papel do palhaço:
Alguns pacientes, que me conhecem como psiquiatra, ao me abordar
evitaram solicitar explicações sobre doenças,
solicitar medicações, exigir exames etc. Eles
diziam prontamente que “palhaço não pode
dar medicações” ou que “há
perguntas que não se fazem a palhaços”,
sugerindo uma boa crítica da realidade. Uma paciente
até usou de bom humor para dizer que eu ficava melhor
“de palhaço”!
SOLUÇÃO: Apesar de ser psiquiatra,
em nenhum momento atuei como psiquiatra no sentido de imaginar
uma medicação ou um diagnóstico para
o paciente; não tentávamos encontrar soluções
psicológicas ou imediatamente terapêuticas para
as comunicações patológicas. Por exemplo,
quando o paciente começou a dizer que o irmão
tinha matado o seu pai, apenas ouvimos o que ele tinha a dizer
e de uma certa forma demos corda para uma mudança de
assunto, ocorrida com a solução musical para
o impasse: o Comendador começou a cantar uma música
do Roberto Carlos (“Estrada de Santos”) e o paciente
uma música do Nelson Gonçalvez (“Boemia”):
Ou seja, não viemos com tentativas de interpretação
ou conforto racional para a angústia vivida pelo paciente;
d. Envolvimento em jogos cênicos com os
palhaços: Um paciente começou
a cantar um “rap” e a dançá-lo comigo.
Passou também a compor um novo rap sobre palhaços
enquanto andávamos em círculo pelo pátio.
Outro paciente começou a cantar para os palhaços,
dizendo que gostava de Roberto Carlos e Nelson Gonçalvez.
Outro paciente começou a contar piadas sujas e “de
loiras”. Outro paciente ficava “controlando”
o palhaço dizendo aonde ele deveria ir, o auxiliando
a subir as escadas. Este rapaz acabou funcionando como o palhaço
branco. Outro paciente ficou decifrando a raiz etmológica
dos nomes das pessoas junto com o palhaço, que ficava
lhe incentivando e elogiando suas descobertas sagazes.;
SOLUÇÃO: Se o paciente começasse
a dançar, dançávamos juntos, se começassem
a correr, corríamos juntos, se começassem a
compôr uma música, compúnhamos juntos.
Inclusive, quando eu estava com violão, comecei a fazer
uma base harmônica para uma melodia e letra improvisada
de um paciente;
e. Comunicações simétricas
e complementares: Alguns pacientes estabeceram
pontuações simétricas de comunicação
com os palhaços, no sentido de participarem um acontecimento
de sua vida sem solicitar explicações ou soluções
e o palhaço apenas concordava muitas vezes empatizando
e trazendo experiências semelhantes de sua própria
vida (exemplo de interação simétrica);
por outro lado, alguns pacientes davam “conselhos”
aos palhaços, como, por exemplo, o jeito que eles deveriam
se vestir ou como eles deveriam se portar quanto a rotinas
do hospital (interação complementar). Um paciente,
por exemplo, mostrou que é bom guardar algumas laranjas
do almoço no caso de sentir fome à tarde; outro
paciente “ensinou” ao palhaço que, se houver
vontade de fumar, existe um fornecedor de cigarros para dentro
do hospital;
SOLUÇÃO: Comunicações
simétricas: Estabelecemos um padrão de comunicação
de acreditar no que os pacientes estavam dizendo, sem encarar
como delírios, sob a permissão cênica,
o que talvez não ocorra em nenhuma conversa dos pacientes
com médicos ou terapêutas do hospital, que, de
certa forma, se sentem incomodados em “delirar junto
com os pacientes”. Tratamos o paciente de igual para
igual, sem o distanciamento entre o “normal” e
o “patológico”;
Comunicações complementares:
Aceitamos as sugestões dos pacientes, porém
nos permitimos a dar sugestões também, como,
por exemplo, dizer que alguma paciente precisava de namorado,
ou que um paciente precisava tomar banho, ou que um paciente
só pensava em sexo, ou que uma enfermeira deveria ser
respeitada, principalmente as bonitas etc...
f. Respeito recíproco e confiança
em relação à figura do palhaço:
houve um cuidado em receber bem o palhaço e em aceitar
a sua atuação dentro do hospital (comunicação
simétrica saudável);
SOLUÇÃO: Se o paciente estava
nos levando para um “tour” pelas enfermarias,
acreditamos nele; se o paciente quisesse auxiliar o Comendador
a subir as escadas, ele aceitava, dando uma nova dimensão
de simetria para as relações;
g. Permeabilidade para as comunicações
não-verbais: fácil contato visual,
proximidade corpórea, contato físico, comunicação
com os pacientes à distância, danças,
risadas e gargalhadas, sem nenhuma relação com
o conteúdo do discurso;
SOLUÇÃO: Aceitávamos
apenas ficar olhando para os pacientes, aceitávamos
os abraços, aceitávamos cantar junto com eles,
aceitávamos dançar, aceitávamos delirar,
aceitávamos gritar e sair correndo etc. Tudo faz parte
do universo do palhaço....
h. Baixo índice de metacomunicações:
ou seja, a comunicação não precisa ser
significada ou pontuada a todo momento, como é de praxe
com pacientes neuróticos, que estão, em muitos
momentos da conversa, analisando o que está se passando.
Este conceito de saúde comunicacional diverge da função
da interpretação psicanalítica, que,
a todo momento, metacomunica o que está acontecendo,
as intenções do paciente etc.... Os pacientes
simplesmente conversavam e incluíam a figura do palhaço
como um facilitador da comunicação.
SOLUÇÃO: Permanecemos no estado
do palhaço na maior parte da intervenção,
apenas destituindo do estado quando algum funcionário
nos interrompia por alguma questão prática,
como quando estávamos atrapalhando as atividades, ou
quando estávamos adentrando o horário do almoço.
No restante do tempo, pouco racionalizávamos tentando
interpretar os fatos, apenas vivíamos as situações
com o máximo de sensorialidade possível, quase
como uma “associação livre”;
i. Desapego: a figura do palhaço
não gerou uma complementaridade comunicacional simbiótica,
que, por sua vez, viesse a sucitar angústia de separação.
Os pacientes facilmente quebravam a interação
para fazerem outras atividades ou para conversar com outras
pessoas, sem necessariamente significar uma diminuição
da atenção voluntária; os pacientes aceitaram
a saída dos palhaços do hospital nas duas interações.
O significado deste desapego pode ser entendido de uma forma
negativa, como não-criação de vínculo,
ou como positiva, como capacidade de criação
de interações simétricas, sem simbiose.
SOLUÇÃO: Aceitávamos
o movimento dos pacientes de ir e vir a hora que bem entendessem,
sem que estas separações angustiassem, fator
primordial para a sobrevivência do palhaço;
2) Situações de “doença”
comunicacional:
a. Discurso com conteúdo delirante e distanciamento
afetivo: Alguns pacientes vinham se apresentar
acreditando ser outras pessoas. Um paciente dizia ser o Agostinho
da “Grande Família”; outro paciente dizia
ser filho do Silvio Santos; outro paciente dizia ser irmão
do Roberto Carlos. Nestes momentos, havia um intenso distanciamento
afetivo em relação aos palhaços;
SOLUÇÃO: Delirávamos
junto e mantínhamos a tensão afetiva no sentido
de não sair de perto do paciente ou parar de conversar
como se “estivéssemos entrando numa conversa
de loucos”;
b. Afetividade ambivalente: Interação
amistosa que rapidamente cedia lugar a um afeto triste e desesperado.
Por exemplo, um paciente que iniciou recebendo a gente muito
bem, dizia que gostava e respeitava muito os palhaços
e, subitamente, começou a chorar e a dizer que “o
seu irmão tinha matado o seu pai”;
SOLUÇÃO: Ficávamos ambivalentes
juntos, ficando de uma certa revoltados junto com o paciente
ou se emocionando com o tônus afetivo de seu discurso,
muitas vezes menos pelo conteúdo e mais pela forma
de seu discurso;
c. Tentativas de Não-Comunicação:
Alguns pacientes se portaram com se não
tivessem tido contato anterior com o palhaço, como
se tivessem esquecido de “conversas profundas”
que haviam tido na primeira intervenção, nos
deixando com uma sensação de perplexidade e
de tentativa de significação de suas atitudes;
Exemplo: paciente que leu a mão do Comendador e depois
o encontrou e não voltou a tocar no assunto;
SOLUÇÃO: Deixávamos
claro que sabíamos que eles estavam tentando não
se comunicar, tipo: “Ih, este aí não quer
nada com a gente!”, ou “Eu vou gritar!!!”,
ou chegávamos perto e não falávamos nada,
ou ficávamos observando o paciente até ele olhar
para a gente e dávamos um sorriso, ou começávamos
a cantar uma música e tentar estabalecer uma outra
forma de comunicação;
d. Desconfirmação da Comunicação
do Palhaço: Uma paciente que tentava
“arrancar” o meu nariz apesar de minhas inúmeras
tentativas de dizer para ela que aquilo não deveria
ser feito. Paciente que insistia em perguntar o meu nome ou
minha função real, destituído do palhaço
Gusmão;
SOLUÇÃO: Persistimos no nosso
papel e, de certa forma, demos uma “bronca” nos
pacientes que não nos trataram como palhaços
e sim como pessoas comuns;
e. Rejeições da Comunicação:
muitos pacientes buscavam evitar o contato visual com o palhaço
e se concentravam firmemente no que estavam fazendo; outros
pacientes passavam olhando para baixo ou passavam longe dos
palhaços;
SOLUÇÃO: Muitas vezes aceitamos
o movimento do paciente em não se comunicar e respeitamos
que existe um tempo para a aceitação do palhaço;
f. Impermeabilidade: Alguns pacientes
pareciam não estar atentos às soluções
propostas pelos palhaços, como quando o palhaço
dizia: “Eu tenho a solução para os seus
problemas!” e o paciente virava as costas e começava
a conversar com outra pessoa;
SOLUÇÃO: Aceitação
e permanência no papel;
g. Erros na tradução entre os materiais
analógico e digital: Paciente que ficou
agressiva e tentou agredir a equipe quando um paciente sentou
perto de seu quadro, que tinha acabado de pintar, no restaurante
do HOJE; outro paciente que começou a chorar dizendo
que o irmão tinha matado o seu pai;
SOLUÇÃO: Tentávamos
traduzir, por exemplo, mostrando para a paciente que entendemos
que ela ficou chateada por seu quadro ter sido ameaçado.
Fomos até o quadro e o mudamos de lugar. Outro exemplo
foi quando um paciente começou a delirar. Dei um abraço
nele e começamos a andar pelo pátio cantando
uma música, mostrando que o delírio poderia
ser uma forma de necessidade de afeto;
h. Comunicação baseada no conteúdo
e não na forma: Preconceito em relação
à figura do palhaço.
SOLUÇÃO: O conteúdo
de nosso figurino poderia dizer que somos palhaços
comuns, animadores de festa de criança, interessados
apenas em provocar risos superficiais ou uma certa alegria
enlatada, porém a forma de nossa intervenção
foi se mostrando aos poucos, com maior valorização
da particularidade e da singularidade de cada paciente;
A partir de tudo que foi dito acima, qual seria então
a função do palhaço no hospital psiquiátrico?
Acreditamos que existam duas acões: uma imediata sobre
o paciente, que se situa na linha da mudança de paradigma
comunicacional, ou seja, no estabelecimento de comunicações
sobre a ótica do palhaço, como foi descriminado
acima; e outra na linha da transformação da
cultura hospitalar, seja ela na forma como a equipe se comunica
com os pacientes, seja na mudança da estrutura hospitalar.
Aqui, cabe dedicar um cuidado especial. Tentarei descriminar
de uma maneira didática algumas formas de relação
da equipe médica com o paciente e de aspectos da cultura
hospitalar que podem ser transformadas pela atuação
do palhaço:
I) Relação da equipe médica com o paciente:
1. Abordagem dos sintomas psiquiátricos sob a ótica
da doença e do diagnóstico;
2. Impossibilidade de se comunicar com o paciente delirante;
3. Desconhecimento de formas de comunicações
não-verbais;
4. Comunicações complementares;
5. Respeito e confiança em relação aos
pacientes;
6. Metacomunicações (Interpretações);
7. Apego (Hospitalismo);
II) Cultura Hospitalar:
1. Monotonia da situação de internação;
2. Distanciamento de situações alegres e bem-humoradas;
3. Sentimento de menos-valia propiciado pela situação
de internação psiquiátrica;
4. Alteração da percepção têmporo-espacial;
5. Relação pouco familiar com o espaço
do hospital;
6. Disciplina excessiva e controle comportamental;
7. Hiper-medicalização;
8. Contenção emocional da equipe;
9. Situações de rejeição à
internação psiquiátrica;
10. Ambiente pouco alegre e silencioso;
11. Atividades convencionais com os pacientes, sem “elementos
surpresa”;
III) Possíveis Transformações Psicológicas
dos Pacientes:
1. Estabelecimento de padrões comunicacionais saudáveis
(simétricos e complementares);
2. Maior sentido de identidade e responsabilidade;
3. Maior relativização no enfrentamento das
situações de conflito, olhando mais a forma
que o conteúdo (efeito de distanciamento);
4. Maior compreensão dos próprios padrões
de comunicacões não-verbais;
5. Melhor digitalização da comunicação;
6. Estímulo ao desenvolvimento sensorial;
7. Exercício da criatividade para a resolução
de situações de conflito;
8. Estímulo ao desenvolvimento afetivo;
9. Possibilidade de reinserção social;
10. Solução de situações paradoxais,
diminuindo a ansiedade e os momentos de agressividade;
11. Percepção da temporalidade da situação
de internação;
Por enquanto, são estes os nossos resultados e perspectivas.
Estamos num momento de estudo das formas cênicas de
intervenção, que estão se definindo no
decorrer do percurso. O que posso adiantar é:
1. Consideramos que o palhaço deve atuar num nível
relacional, valorizando a singularidade e a particularidade
de cada paciente;
2. Consideramos que o palhaço deve atuar com o nariz,
dado este ser uma máscara muito incorporada pela cultura;
3. Consideramos que o palhaço deve atuar em dupla;
4. Consideramos que deve haver um extenso profissionalismo
na atuação do palhaço, com cuidados especiais
com figurino e aprimoramento artístico;
Frederico Galante Neves
e-mail: fred_neves@ig.com.br
Nando Bolognesi
e-mail: patetas@uol.com.br
|