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O chamado
terceiro setor é uma fábrica de invenções.
Organizações não-governamentais, fundações,
associações e outras entidades sem fins lucrativos
são movidas a criatividade, numa demonstração
de que a necessidade é a mãe das inovações.
Nessa área, porém, criatividade não é
sinônimo de improviso. Na última década,
o terceiro setor cresceu e se sofisticou de tal forma no Brasil
que sobrou pouco espaço para iniciativas movidas só
pela boa vontade. Hoje, impera a profissionalização.
O setor deu um salto quantitativo em poucos anos: em meados
da década de 80, estimava-se o número de organizações
não-governamentais em pouco mais de 2.000; o último
censo da área, feito em 1995 pelo Iser (Instituto de
Estudos da Religião), com apoio do IBGE, apurou a existência
de 250 mil organizações. "Hoje, elas devem
passar de 300 mil", avalia Luiz Carlos Merege, coordenador
do Cets (Centro de Estudos do Terceiro Setor), da FGV-Eaesp
(SP).
"A cultura do setor mudou na década de 90 e,
nesse processo, iniciativas menos profissionalizadas foram
desaparecendo", diagnostica Marcos Kisil, presidente
do Idis (Instituto para o Desenvolvimento do Investimento
Social) e ex-diretor da Fundação Kellogg para
a América Latina e o Caribe. "Uma organização
que trabalha apenas com voluntarismo tem vida curta hoje",
afirma Judi Cavalcante, diretor-executivo-adjunto do Gife,
entidade que reúne fundações ligadas
a empresas.
A profissionalização que avançou nesse
período não se limitou à troca do voluntário
pelo profissional remunerado. Também os métodos
de trabalho se tornaram mais racionais. Foram aperfeiçoados
os mecanismos de captação de recursos, com a
busca de financiadores estáveis. Os resultados dos
projetos passaram a ser analisados com critérios objetivos,
e a avaliação, feita por consultorias externas.
A própria gestão das entidades recebeu mais
atenção, com a busca da eficiência. "O
patrocinador quer resultados consistentes e não se
contenta mais em ver o brilho nos olhos das crianças",
resume Cristina Fedato, coordenadora pedagógica do
MBA em gestão e empreendedorismo social da FIA (Fundação
Instituto de Administração).
Por atuar onde o Estado —primeiro setor— e o
setor privado —o segundo— não funcionaram
ou eram simplesmente ausentes, as iniciativas da sociedade
civil organizada, mesmo com a profissionalização
e o rigor que o planejamento exigem, se mostram ricas em soluções
inovadoras. "O setor tem muita liberdade para testar
novas técnicas, porque não tem as armaduras
do governo ou da área privada", avalia Luiz Carlos
Merege. "É comum encontrar iniciativas que exploram
as fronteiras do conhecimento", afirma.
Como bom farejador de atalhos, o terceiro setor encontra
novas maneiras de cumprir tarefas que, em princípio,
seriam de outra instituição, como de um banco.
Foi o que aconteceu no conjunto Palmeiras, na periferia de
Fortaleza.
A idéia nasceu em 1997, quando os ocupantes do conjunto
fizeram uma pesquisa e perceberam que, juntos, os 30 mil moradores
representavam um grande consumidor, embora individualmente
fossem pobres —perto de 90% ganham até dois salários
mínimos. "Consumíamos o que equivale hoje
a R$ 1 milhão", relata Joaquim Melo, 42, um dos
coordenadores e idealizadores do "banco alternativo".
"Por que, então, não estimular que a própria
comunidade produzisse o que esse grande consumidor precisava
comprar?"
Em janeiro de 1998, a associação de moradores
lançou o projeto Banco Palmas. "Tínhamos
R$ 2.000 para começar. No primeiro dia, emprestamos
tudo e ficamos lisos", relembra Melo. O dinheiro foi
para moradores que queriam montar micronegócios, como
uma pequena confecção. Diante do sucesso da
empreitada, o Banco Palmas recebeu doações e
ajuda de outras organizações não-governamentais
e, após seis meses, já havia emprestado R$ 30
mil. Hoje, tem R$ 50 mil emprestados e 500 moradores interessados
na fila. Os empréstimos vão de R$ 10 a R$ 1.000,
com juros de 1% ao mês para os valores menores e de
3% para os mais elevados. "É a nossa maneira de
conseguir microcrédito", relata Melo. "No
Brasil, pobre não consegue dinheiro no banco porque
não tem como dar garantias. Para o Banco Palmas, interessa
atender quem não as tem."
Com a abertura das linhas de crédito, foi criado também
o palma, uma moeda de troca que funciona apenas dentro da
comunidade. A idéia é estimular os negócios
e fazer com que os ganhos com intermediação
fiquem com os moradores. Hoje, quem precisa do serviço
de um encanador, por exemplo, contrata alguém da comunidade
e paga com essa moeda —pois esse encanador vai poder
usar o mesmo dinheiro no pagamento de outro serviço
ou mercadoria, sempre dentro dos limites do conjunto.
Sobre os empréstimos em palmas não são
cobrados juros. Tudo funciona tão bem que, segundo
Melo, o Banco Central chegou a acusar a comunidade de usar
dinheiro falso —confusão que só foi desfeita
em abril, quando uma investigação do BC terminou
sem ver motivo para punições. "O fato é
que o dinheiro de verdade está preso nos bancos, por
isso criamos o nosso", provoca Melo.
A comunidade também criou empreendimentos paralelos
para reforçar a geração de empregos,
como a confecção Palma Fashion, a fabricante
de produtos de limpeza Palma Limpe e a escola de empreendedorismo
Palma Tec. Somando as iniciativas, a "holding" representou
a abertura estimada de 1.200 postos de trabalho.
Faz parte do terceiro setor, por definição,
a ação privada que tem interesse público.
Assim, é possível localizar no Brasil Colônia
as primeiras ações com essa característica
—a exemplo da Santa Casa de Santos, criada em 1534.
Nos anos 80, boa parte das ONGs tinha origem em movimentos
sociais iniciados no regime militar, por isso se pautavam
por reivindicações mais pontuais e ações
predominantemente assistenciais.
Durante anos, foi esse o tom da sociedade civil organizada.
"Não é que faltasse visão, mas as
ações tinham um sentido de urgência",
analisa Luiz Carlos Merege, que recorda o exemplo do sociólogo
Betinho, que, para defender a necessidade de seu projeto,
repetia a frase: "Quem tem fome tem pressa". "Ele
sabia que doar comida não trazia solução,
mas via uma situação social de emergência",
diz Merege. Hoje, a maior parte das organizações
adotou um novo posicionamento estratégico e busca a
auto-sustentabilidade.
O Reciclar, de São Paulo, por exemplo, já incorporou
essa nova visão. Ali, jovens de 16 a 19 anos, vindos
da favela do Jaguaré, na zona oeste da capital paulista,
trabalham com carteira assinada fazendo produtos de papel
reciclado. Criada há nove anos, a iniciativa ganhou
neste mês o prêmio Bem Eficiente, criado em 1997
pelo economista Stephen Kanitz para evidenciar organizações
eficientes no uso de seus meios e nos resultados que obtêm.
Além do trabalho, os adolescentes têm acompanhamento
escolar e aulas de arte e informática. "A idéia
é reciclar, mas não apenas o papel. O jovem
aqui recicla sua vida, que começou em condições
difíceis", diz o gerente administrativo-financeiro
do projeto, Paulo Roberto de Carvalho.
O Reciclar caminha para a auto-sustentabilidade: hoje, apenas
25% do orçamento vem dos patrocinadores. O restante
é obtido com a venda dos produtos —foram 195
mil unidades em 2003. A iniciativa traz como diferencial usar
a reciclagem para despertar no jovem o gosto por tocar um
negócio como empreendedor. Lá a gestão
é participativa: o adolescente toma parte das decisões
com a diretoria, se preocupa com o planejamento estratégico
e tem também a oportunidade de fazer estágio
em todos os setores e propor novos produtos para o mercado.
Na outra ponta, a capacidade de um projeto de surpreender
pode ajudar em visibilidade e, com isso, abrir o caminho para
conseguir parceiros. Quando os especialistas da multinacional
alemã Bayer estavam à procura de uma iniciativa
promissora na área de agricultura familiar para se
associar, foi justamente a criatividade da ação
que os levou até a Agência Mandalla, da Paraíba.
"Pretendíamos visitar o Estado e, quando vimos
uma notícia do projeto na TV, nós o incluímos
no nosso roteiro", lembra o engenheiro agrônomo
Marcelo Vasconcelos, da Bayer CropScience, divisão
da empresa especializada em agricultura. Após o encontro,
a Bayer e a Agência Mandalla fecharam parceria para
trabalhar juntas em dois assentamentos.
O projeto Mandalla é uma forma inovadora de cultivo
em pequena propriedade inspirada no Sistema Solar. Prevê
a construção de um reservatório de água
circular no centro da área cultivada, no qual são
criados marrecos e peixes. Ao redor, são plantados
produtos a serem irrigados com essa água, com formato
de círculos concêntricos, como se fossem anéis.
São nove anéis, como os nove planetas do Sistema
Solar, com os produtos destinados à subsistência
nos círculos mais centrais e os destinados à
venda no mercado nos anéis mais externos.
A idéia é gerar sustento e excedentes próximos
de R$ 800 mensais para cada família. Ainda haveria
ganhos não estritamente econômicos. "Nosso
projeto cria equilíbrio: equilíbrio com o ambiente,
equilíbrio dentro da família, da comunidade,
do país e do mundo", afirma Willy Pessoa, autor
e coordenador da idéia, um administrador de empresas
de 55 anos que diz ter levado 30 deles a desenvolvendo.
Noves fora o lado esotérico, o projeto funciona? "Do
ponto de vista agronômico, funciona muitíssimo
bem", informa Marcelo Vasconcelos, da Bayer. "É
uma tecnologia simples, de baixo custo e muito bem aceita
pelos pequenos produtores."
No mês passado, Joaquim Melo, do Banco Palmas, Willy
Pessoa, da Agência Mandalla, e outras 16 pessoas foram
escolhidos para receber apoio do Centro de Competência
para Empreendedores Sociais Ashoka-McKinsey. A Ashoka é
uma organização não-governamental internacional
que apóia empreendedores sociais criativos com capacitação
e uma bolsa de três anos no valor médio de R$
3.000 por mês. "Não procuramos o bom gestor
de creche, mas alguém que proponha revolucionar todo
o sistema de gestão dessas instituições",
afirma Cristina Murachco, diretora da organização
no Brasil. A iniciativa mostra a importância da inovação
para o terceiro setor. O ramo brasileiro da Ashoka já
apoiou 222 empreendedores sociais desde que se estabeleceu
aqui, em 1986.
O Banco Palmas e a Agência Mandalla enfrentam agora
o desafio de seguir os passos de crescimento de muitas ONGs.
Em geral, as entidades começam com interesse localizado
e dificuldade para se financiar. Quando suas iniciativas se
mostram viáveis, chamam a atenção de
outras organizações maiores, formam parcerias
com entidades intermediárias e passam a fazer parte
das redes que hoje predominam no terceiro setor.
É nessa rota de crescimento que as organizações
costumam se deparar com a necessidade de profissionalização.
"É uma questão de ganhar eficácia
e escala. Para ampliar seu trabalho, você precisa se
organizar", avalia Cristina Murachco. "É
um caminho inexorável, que não representa a
desvirtuação de um projeto. Pelo contrário,
é justamente para potencializá-lo", diz
Cristina Fedato, da FIA.
A produção de mel do Parque Nacional do Xingu
e o projeto Casa da Criança, de Recife, são
dois casos em que a profissionalização foi decisiva
para o crescimento.
No caso dos índios do Xingu, havia uma idéia
criativa, mas faltava estrutura. Em meados da década
de 80, a Funai (Fundação Nacional do Índio)
tentou implantar projetos para promover a auto-sustentação
econômica das aldeias. Apenas a produção
do mel se mostrou compatível com o modo de vida local.
"O mel é próximo do jeito tradicional de
produzir do índio, baseado na extração
e na coleta", explica Ianukulá Kaiabi Suiá,
26, da Atix (Associação Terra Indígena
do Xingu). Foi um achado: uma forma de explorar comercialmente
a natureza, sem depredá-la e respeitando costumes.
Mas, sem apoio técnico, o projeto rapidamente fracassou.
"Não sabíamos direito como fazer",
explica.
Só anos depois, com o apoio do ISA (Instituto Socioambiental)
e da Apacame (Associação Paulista dos Apicultores
Criadores de Abelhas Melíferas Européias), o
mel voltou a ser produzido em escala comercial. Hoje, metade
das 25 aldeias da região produz mel, e a produção
anual gira em torno de 1,5 tonelada.
No ano passado, a Atix começou a vender para o consumidor
da região Sudeste, por meio de um projeto do grupo
Pão de Açúcar chamado Caras do Brasil,
que dá apoio a iniciativas de geração
de emprego e renda espalhadas pelo país. "Com
os R$ 15 mil por ano que ganhamos com o mel, passamos a não
depender financeiramente só da Funai", afirma
Ianukulá.
No caso do projeto Casa da Criança, a profissionalização
foi fundamental para permitir a multiplicação
da iniciativa. Em 1999, a arquiteta Patrícia Chalaça,
33, com o marido e com ajuda de amigos, decidiu reformar a
Casa de Carolina, em Recife, que servia de abrigo para crianças
vítimas de abandono e maus tratos. Da mão-de-obra
especializada ao material para acabamento, tudo foi conseguido
de graça, sensibilizando arquitetos, construtoras e
outros profissionais da construção civil. "Convenci
todo mundo a sonhar junto", conta Patrícia.
A reforma foi um sucesso, mas a arquiteta não pôde
dizer o mesmo do destino dado ao abrigo pelo parceiro governamental.
"Era nossa primeira experiência, e não exigimos
a devida contrapartida. O aproveitamento e a manutenção
da casa, depois de reformada, deixaram a desejar", avalia.
Estimulada pela primeira experiência, Patrícia
partiu para a segunda reforma, agora na Casa do Candango,
em Brasília. Dessa vez, porém, a força-tarefa
contou com um tipo diferente de profissional voluntário:
o advogado. Todas as relações envolvidas nas
empreitadas do projeto passaram a ser reguladas por contrato,
do compromisso de doação de um parceiro local
à estrutura de funcionamento posterior prometida pelo
governo, responsável pela casa. "Desse jeito,
podemos cobrar como qualquer cliente que paga, caso determinado
material atrase, por exemplo", diz Patrícia.
O Casa da Criança já reformou 19 abrigos, em
12 cidades diferentes. Neste ano, outras cinco casas devem
ser entregues, incluindo a primeira unidade totalmente construída
pelo projeto, em Goiânia, e um centro que servirá
de sede para dez organizações cearenses de apoio
à criança. O projeto conta hoje com 55 articuladores
locais e já envolveu 2.000 arquitetos em seus trabalhos.
Também firmou parceria com o Instituto Ronald McDonald,
com quem atuará na reforma de instalações
de hospitais para receber crianças doentes.
Hoje, nas organizações mais profissionalizadas,
a maior sofisticação dos processos exige conhecimentos
mais profundos dos envolvidos, e o voluntário, mais
inconstante, chega a ser fator de instabilidade para alguns
projetos.
"O voluntário desaparece sem dar notícia",
lamenta Maria Dulce Peixoto Barbosa, presidente da Associação
Memória Gráfica, de Belo Horizonte, que oferece
oficinas de artes gráficas para adolescentes em situação
de risco, alguns deles infratores. "A gente compreende
que as pessoas têm seus problemas, mas um voluntário
que deixa de aparecer esquece que o jovem que ele atende virá
de qualquer maneira", diz a artista.
A Associação Memória Gráfica
foi criada em 1998, quando Maria Dulce Peixoto e seu marido,
Osvaldo Medeiros, encontraram máquinas de tipografia
encostadas num depósito pertencente ao Estado de Minas
Gerais e tiveram a idéia de usá-las para, por
meio das artes gráficas, ajudar na integração
social de adolescentes.
Começou um mutirão entre artistas e amigos
para colocar de pé a associação e conseguir
parcerias com governo e iniciativa privada para atender os
jovens. Até hoje, mais de 500 adolescentes já
passaram pelas oficinas do projeto. Um dos primeiros alunos,
Osanan Frederico da Cruz, prepara sua primeira exposição
individual de gravuras.
Patrícia Chalaça, do Casa da Criança,
só viu vantagens em tratar de forma mais profissional
a iniciativa que começou como uma ação
entre amigos. "Não é só uma questão
de facilitar o patrocínio das empresas privadas",
afirma. "Profissionalizando-se, você consegue ampliar
seus resultados", acredita a arquiteta. Carlos Merege,
do Cets, afirma que foi justamente essa constatação
que quebrou a resistência à profissionalização
existente no início dos anos 90. "Os responsáveis
pelas ONGs eram antes de tudo militantes, que consideravam
um absurdo seguir princípios de empresa", explica.
Depois, conta Merege, eles perceberam que a mudança
favoreceria a atividade-fim.
A atitude dos financiadores também contribuiu para
a evolução. Para colocar dinheiro em projetos,
eles passaram a exigir eficiência e transparência.
"O patrocinador quer o melhor uso para seus recursos,
por isso é natural que ele queira avaliar resultados
objetivamente", afirma Cristina Fedato, da FIA. Judi
Cavalcante, do Gife, chama a atenção para a
disputa cordial que existe entre as organizações
não-governamentais. "Elas competem por recursos,
espaço na mídia, corações e mentes",
afirma. "A eficiência passou a ser um diferencial
importante, talvez o mais importante."
Para Marcos Kisil, do Idis, a profissionalização
avançou mais rapidamente nas entidades intermediárias
—as que em atuam em parceria com as organizações
de base, dando a elas apoio técnico e financeiro. "Essas
entidades perceberam primeiro que no Brasil existiam financiadores
para ações sociais", afirma. Hoje são
elas que, em grande medida, fazem o papel de financiadoras,
repassando por meio de parcerias os recursos a que têm
acesso. Nesse processo, elevaram a escala dos projetos a um
novo patamar.
Um exemplo é o CDI (Comitê para Democratização
da Informática), considerado pioneiro na ação
pela inclusão digital. A entidade e suas parceiras
locais já atenderam a cerca de 575 mil crianças
e jovens desde sua criação, em 1995. A Fundação
Abrinq e seus parceiros beneficiaram a mais de 1 milhão
de crianças em 13 anos de atuação. O
Instituto Ayrton Senna, criado em 1994, atendeu a quase 4
milhões de crianças e adolescentes.
A elevada profissionalização e o volume de
recursos começam a levantar questões novas para
o terceiro setor. Haverá um limite desejável
para o crescimento de uma entidade? Existe o risco de a criatividade
ser sufocada pela racionalidade? A eficiência deixará
sem espaço a mobilização?
Na opinião de Marcos Kisil, já existem casos
de hipertrofia em algumas organizações que demonstram
sofisticação e concentração de
recursos acima do desejável. Ele teme que a alta mortalidade
que se vê em organizações menos profissionalizadas
acabe privando a sociedade de uma "contribuição
muito útil", sobretudo no que diz respeito às
entidades mais assistencialistas. "Há públicos
que sempre serão dependentes de assistência,
como deficientes e idosos doentes", observa Kisil.
O pesquisador Augustin Woelz, 61, vive uma história
que serve como sinal de que a profissionalização
do setor pode aumentar a distância entre uma boa idéia
e sua realização. Ele desenvolveu um aquecedor
solar de baixo custo, capaz de reduzir a conta de energia
elétrica de famílias pobres. Sua tecnologia
foi desenvolvida em um centro de incubação de
inovações, contando com verbas da Fapesp (Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo),
enquanto manteve a intenção de usá-la
para fins lucrativos. Quando, em 2002, Woelz concluiu que
teria mais satisfação pessoal como uma ONG e
desistiu de ser empresário, a Fapesp ficou impedida
de continuar financiando o projeto. E a boa idéia,
no momento, está num limbo institucional, como se Woelz
falasse uma língua perdida que o terceiro setor já
não entende mais. "Ainda não encontrei
meu lugar no terceiro setor, que hoje exige muita profissionalização",
diz Woelz.
A atual experiência de Luiz Carlos Merege, coordenando
um censo de ONGs no Pará, indica que a falta de capacitação
também representa um fator limitador para entidades
de menor porte. "As pequenas sentem falta de técnicas
melhores de gestão administrativa e elaboração
de projetos", relata. "Acontece que, para elas,
os custos para adquirir esses conhecimentos são proibitivos."
Em sua opinião, um dos desafios da sociedade civil
organizada hoje é ampliar o acesso desse público
aos conhecimentos.
Judi Cavalcante é otimista. "Vejo, sim, o risco
de criar nas entidades um ambiente em que os processos são
burocratizados e hierarquizados de tal forma que haja dificuldade
de dar resposta a cenários ou problemas novos",
afirma o diretor-executivo-adjunto do Gife. "Mas considero
essa ameaça superável, porque a área
social sempre se pautou por um grande 'jogo de cintura'."
Afinal, criatividade e profissionalização não
são, de modo algum, incompatíveis. Por um motivo
simples: nos dias de hoje, para ser um bom profissional é
preciso ser criativo.
ROGERIO SCHLEGEL
free-lance para a Folha de S.Paulo
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