Quase como em um episódio
de fuga, o professor e jornalista João da Rocha Freitas
Neiva, 54, simplesmente atravessou o portão sem olhar
para trás e nunca mais voltou. Sem se despedir, ele
abandonou quase três meses de uma experiência
de educador social na Febem de São Paulo.
Do tempo que ficou, diz que viu de
tudo, foi perseguido por denunciar regalias a internos e coagido
a dar dinheiro para adolescentes comprarem droga, menos trabalho
pedagógico.
"Saí totalmente desmoralizado.
Queria fazer algo, mas me senti massa de manobra", afirma
Neiva, que trabalhou de janeiro até o final de março
no complexo do Tatuapé da Febem, na zona leste.
Pelo mesmo portão pelo qual
Neiva "escapou", outros educadores contratados pela
administração Geraldo Alckmin (PSDB) para melhorar
o atendimento da Febem também abandonaram o trabalho.
Segundo dados da própria Fundação Estadual
do Bem-Estar do Menor, o índice de desistência
dos 1.041 educadores sociais contratados neste ano, de 17,86%,
corresponde a três vezes a média das demissões
voluntárias registradas na instituição
em 2005. Eles são os funcionários que mais pediram
demissão na Febem neste ano.
Segundo a instituição,
a média geral de demissões voluntárias
na instituição é de 1,5% ao mês.
Se seguisse esse padrão, a desistência dos educadores
deveria ficar em 6%.
Em números absolutos, de janeiro
até o dia 9 deste mês, 186 educadores sociais
pediram para sair, os dados não incluem os demitidos
pela Febem.
Os educadores sociais são responsáveis
pelo contato direto com o interno e pela operacionalização
das atividades pedagógicas. Eram apresentados pelo
governo Alckmin como um fator de melhoria na instituição,
principalmente por terem curso superior.
Em fevereiro, a Febem demitiu 1.751
monitores que acumulavam as funções de trabalho
pedagógico e contenção. Eles estavam
sendo substituídos pela instituição desde
janeiro por educadores sociais e agentes de segurança
nos principais complexos -Tatuapé, Vila Maria, Raposo
Tavares e Franco da Rocha.
Office-boy
Em menos de três meses, Neiva disse que teve
motivos suficientes para ser um dos que abandonaram a instituição.
Ele teve a sorte de estar de folga em todas as rebeliões
ocorridas no complexo do Tatuapé em 2005 -15 num total
de 26 registradas na fundação até sexta-feira
passada.
Mas foi no dia-a-dia, segundo o professor,
que ele foi vencido. "Fui contratado para ser educador
social, mas, se consegui fazer alguma ação pedagógica
por algumas horas, foi muito", diz.
Segundo ele, seus projetos iniciais
de implantar uma horta ou criar um grupo de teatro foram logo
engavetados. "Só mandavam fazer bingo com os internos
no qual eram distribuídos doces. Isso que é
assistência pedagógica? Além de estimular
o jogo, ainda ajudava a terminar com os dentes dos internos",
afirma.
Neiva diz que se transformou em um
office-boy dos internos. "Eu só servia para entregar
sabonete, chinelo, pasta de dente que os internos pediam.
Eu era um office-boy dos adolescentes", afirma o professor.
Por diversas vezes, ele diz que denunciou
regalias e ameaças, mas nada aconteceu. Em uma dessas
situações, ele conta que dois internos pediram
para conversar em uma sala. Quando entrou, a porta foi fechada
por fora por outros adolescentes.
Eles queriam um telefone celular,
mas Neiva não tinha. Pediram, então, R$ 5, caso
contrário chamariam os internos que estavam do lado
de fora e ocorreria um espancamento.
"Pensei que seria muito pior
ser agredido ali e acabei entregando o dinheiro, que foi usado
para comprar droga. Eu vi os internos negociando a compra
da droga 30 minutos antes", lembra Neiva.
O professor diz que denunciou o caso
à direção do complexo. "Ficou por
isso mesmo. Não quiseram fazer nada porque um dos internos
estava para sair em liberdade assistida", afirma. A gota
d'água ocorreu, segundo Neiva, quando teria presenciado
a agressão de PMs a um interno prestes a ser transferido
para outra unidade da Febem.
Quando chegou ao destino, Neiva diz
que fez questão de afirmar na unidade que o jovem tinha
apanhado. Como o interno não tinha marcas, ele foi
aconselhado a esquecer o assunto. "Ficou insustentável.
E os internos, que não são bobos, sabem quando
a direção está insegura. E aí
eles montam mesmo", disse.
Para Ariel de Castro Alves, do Movimento
Nacional de Direitos Humanos, a desistência dos educadores
sociais mostra que não há projeto pedagógico
na Febem. "Essas pessoas só nadam contra a maré
e sofrem boicote de todos os lados", diz.
Alves acredita que o índice
de abandono vai crescer. "Se a linha-dura voltar, como
parece que está acontecendo, mais pessoas vão
desistir. Não adianta ter pessoas bem intencionadas
em um sistema falido e corrompido."
Para o advogado João José
Sady, professor de direito do trabalho e diretor da Associação
Latino-americana de Advogados Trabalhistas, o índice
de demissão voluntária de 17,86% entre os educadores
sociais revela péssimas condições de
trabalho.
"As pessoas estão desesperadas
atrás de um emprego. Se estão desistindo, num
cenário como esse, é porque a situação
deve ser brutal", afirma Sady.
Outro lado
A Febem informou que muitos educadores sociais contratados
neste ano não se adaptaram à rotina dos trabalhos.
A instituição admite
que a desistência está acima da média
das demissões voluntárias registradas, mas afirma
que tomou uma série de providências para resolver
os problemas.
Uma das medidas foi a substituição
de 11 diretores do complexo do Tatuapé, na quarta-feira
da semana passada. Esses diretores, segundo a fundação,
não se adequavam ao projeto pedagógico.
De acordo com a Febem, houve dificuldades
no período em relação ao trabalho pedagógico
pretendido justamente por se tratar de uma fase de transição.
Nesse projeto, as atribuições
dos monitores foram divididas entre os educadores e os agentes
de segurança. O objetivo seria, segundo a instituição,
melhorar o relacionamento entre funcionários e internos
e acabar com os espancamentos nas unidades.
Segundo a assessoria da Febem, muitos
educadores podem não ter se sentido confortáveis
nesse período ou até frustrados com o resultado
do trabalho. Mas a fundação reforçou
que a substituição do comando do complexo vai
permitir a retomada do trabalho.
Em relação ao caso do
agente de segurança Joni Peres, que afirma ter sido
abandonado pela Febem, a assessoria informou que a instituição
cumpriu todas as suas obrigações trabalhistas.
De acordo com a fundação,
Peres recebeu os dias a que tinha direito até a data
da rebelião mais os 15 dias de pagamento previstos
na legislação trabalhista --quando ele deveria
começar a receber o pagamento pelo INSS.
Sobre um seguro previsto do 16º
dia até a definição do pagamento pelo
INSS --no valor diário de R$ 50, para evitar que o
funcionário fique algum período sem remuneração,
a assessoria de imprensa afirmou que há uma divergência
de interpretação entre a Febem e a Cosesp (Companhia
de Seguros do Estado de São Paulo).
A fundação seria favorável
ao pagamento do seguro, considerando as agressões como
acidente de trabalho, mas a companhia teria uma posição
contrária. Essa questão ainda está em
discussão.
A Febem também informou que
foi feita uma CAT (Comunicação de Acidente de
Trabalho) do caso, como prevê a legislação.
Por último, a fundação
negou descontrole nas unidades, conforme afirmaram os funcionários,
mas garantiu que qualquer denúncia formalizada será
apurada.
Apesar de negar o descontrole,
porém, a própria Febem demitiu, na semana passada,
oito funcionários do Tatuapé flagrados em uma
revista com celulares dos internos. Eles dizem que foram coagidos
pelos adolescentes.
GILMAR PENTEADO
da Folha de S.Paulo |