Eles chegam em fila, sentam-se no
chão e, em questão de segundos, ninguém
mais ouve nada. Em meio aos ruídos, cochichos e risadas,
um diálogo sobressai. "Que bicho é esse?",
pergunta a professora, indicando a figura estampada no livro.
"Um urso!", respondem os alunos, em coro.
Em idade pré-escolar, eles
ainda não lêem, mas já estão se
acostumando às visitas à primeira biblioteca
pública de Mombuca, uma das 84 cidades do Estado, dentre
as 645, atendidas pelo projeto "São Paulo: Um
Estado de Leitores", lançado em 2003 pela Secretaria
de Estado da Cultura.
A meta de zerar o número de
municípios sem bibliotecas, apregoada pelo governo
federal, que, no segundo semestre, lança o Plano Nacional
do Livro e Leitura, foi atingida neste mês por São
Paulo.
O projeto consistiu em uma parceria
com a iniciativa privada para a doação de acervos
às cidades sem bibliotecas. O governo Geraldo Alckmin
(PSDB) estima o valor do projeto entre R$ 1,5 milhão
e R$ 2 milhões, totalmente financiado pelas empresas.
Municípios com menos de 10
mil habitantes receberam 600 títulos, e os pólos
maiores, mil --além de um computador. Às prefeituras
coube ceder um espaço e contratar um funcionário.
As experiências em cada cidade
se mostram bem variadas, conforme constatado em uma visita
feita pela Folha a três delas nas regiões de
Campinas e Limeira.
Engenheiro Coelho, com pouco mais
de 10 mil habitantes, é a única das três
que tem um profissional com formação em biblioteconomia.
Lá, o acervo já foi organizado, e o computador
ajuda no controle dos empréstimos, mas ainda não
há acesso à internet. Atividades para incentivar
a leitura, entretanto, são incipientes.
Em Mombuca, com cerca de 3.000 moradores,
o antigo bar da rodoviária abriga hoje a biblioteca.
O acervo, recebido em novembro de 2004, já aumentou
graças às campanhas de arrecadação
e às solicitações feitas às editoras,
mas nenhum livro foi catalogado até agora. A movimentação
é controlada manualmente, com fichas de papel, e o
profissional encarregado da biblioteca não concluiu
nem o ensino fundamental.
O mesmo ocorre em Santa Maria da Serra,
cidade com cerca de 4.600 habitantes, cuja biblioteca, instalada
na sala de uma escola de educação infantil,
ainda não tem um funcionário responsável.
"Tínhamos duas opções:
ou estabelecíamos critérios bastante sofisticados
e o projeto não seria realizado, ou deixávamos
por conta do prefeito viabilizar a inauguração",
justifica o coordenador do projeto, José Luiz Goldfarb.
"Concordo que o retorno ao nosso
chamamento foi variado em relação à qualidade.
Houve prefeitos que arrumaram lugares superbons e conseguiram
profissionais preparados. A minha vontade era ter um bibliotecário
em todas elas, mas, se eu colocasse isso como condição,
não conseguiria. Eles não têm dinheiro."
Os pacotes doados contêm livros
de literatura adulta, infanto-juvenil e informativa. Como
o programa privilegia apenas a chamada "leitura por prazer",
a lista não inclui didáticos nem técnicos.
"A leitura mais importante na
vida de um cidadão bem informado é a que ele
faz não porque tem que ler. Essa leitura descompromissada,
por prazer, é a mais importante", diz Goldfarb.
Assim, há desde Machado de
Assis e outros clássicos da literatura brasileira e
estrangeira até best-sellers como "Harry Potter"
e os de Paulo Coelho, líderes na preferência
dos leitores.
"O que a criança lê
de início é mais ou menos irrelevante, porque
cria o hábito. Depois vem a seleção do
que é preferível ler. Não se deve ser
muito restritivo ou severo nesse tipo de leitura. Ler gibi
é melhor do que ver TV. O importante é criar
o hábito", diz o bibliófilo José
Mindlin, 90.
A lista de livros, segundo Goldfarb,
foi definida com base nas sugestões dos membros do
Conselho Paulista de Leitura, presidido por Mindlin e integrado
por representantes governamentais, de escritores, do setor
livreiro, da academia e da iniciativa privada.
"Pedi para todo esse pessoal
dar dicas. Eu tinha muitas idéias sobre o que forma
uma biblioteca básica porque vendi livros, por quase
20 anos, para essas pessoas que começam a se interessar
pela leitura", conta Goldfarb, sobre sua experiência
como livreiro --foi dono da livraria Belas Artes.
Para Mindlin, com um acervo particular
estimado em 40 mil títulos, o déficit de bibliotecas
é uma das causas dos baixos índices de leitura.
"O acesso ao livro não
deveria depender de a pessoa ter o livro, porque grande parte
da população não tem condições
de formar uma biblioteca particular", diz. Mas adverte:
"Não basta instalar bibliotecas, é preciso
formar bibliotecários que possam orientar a leitura,
ajudar o leitor".
Informação pública
A intenção de zerar déficits
é questionada pelo professor de Biblioteca, Informação
e Sociedade do curso de biblioteconomia da Universidade de
São Paulo, Luís Milanesi, que também
é diretor da Escola de Comunicação e
Arte.
"O que me assusta é esta
concepção de biblioteca como acervo. Biblioteca
é serviço de informação pública",
diz Milanesi.
"Zerar índices de governo
não vai resolver nada. Das bibliotecas implantadas
pelo INL [Instituto Nacional do Livro] na década de
40, quantas pegaram? Semear livros a mancheias? Não
é isso. Biblioteca é para ser vivida, se não
for vivida, perde a função."
Essa mesma política, porém,
guia o Plano Nacional do Livro e Leitura (PNLL), projeto do
governo federal que pretende, até 2007, aumentar em
50% o índice de leitura, hoje estimado em 1,8 livro
por habitante/ano. O PNLL tem quatro eixos: o acesso ao livro,
a formação de professores e bibliotecários,
as ações de valorização do livro
e da leitura e o apoio à cadeia produtiva e criativa
do livro.
Defensor de uma biblioteca baseada
num tripé verbal --informar, discutir e criar--, Milanesi
defende outra concepção de informação,
na qual o trabalho é guiado de acordo com a demanda,
o que, segundo ele, os atuais projetos estão longe
de oferecer.
"A política federal chama-se
"Fome de Livro" e está no mesmo caminho:
zerar estatística. A idéia que se tem é:
biblioteca é uma coleção de livros, portanto,
se comprarmos livros e colocarmos no município, resolvemos
o problema. Isso é cândido. Num mundo de internet,
o que você vai fazer com uma coleção de
livro?"
O coordenador do PNLL, Galeno
Amorim, se defende: "É preciso ter uma política,
e a abertura de biblioteca é uma das 20 linhas de ação.
Em momento nenhum se trabalha com a perspectiva de que zerar
vai resolver a questão da leitura. Zerar, somado a
outras ações, vai levar a um aumento no número
de leitores".
JANAINA FIDALGO
da Folha de S. Paulo
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