Depois
de uma reunião que durou quase três horas, na
noite de quinta-feira, com a participação dos
dirigentes de seis centrais sindicais, o presidente Luiz Inácio
Lula da Silva e o ministro extraordinário de Assuntos
Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, bateram o martelo
numa agenda mínima para promover "mudanças
radicais" nas relações entre capital e
trabalho no Brasil. As transformações visam
reduzir drasticamente a informalidade no mercado de trabalho,
reverter a queda da participação dos salários
na renda nacional e reformar o regime sindical.
A partir do diagnóstico de que o regime trabalhista
criado nos anos 40 do século passado por Getúlio
Vargas, embora tenha trazido avanços à sua época,
tornou-se obsoleto ao deixar a maioria dos trabalhadores fora
de sua proteção, Mangabeira e sua equipe vêm
debatendo o tema há oito meses com as centrais, sindicatos
patronais e grandes empresários. O objetivo é
encontrar pontos de convergência e, a partir daí,
formular propostas e enviá-las ao Congresso até
o fim deste ano.
Da reunião com as centrais (CUT, Força Sindical,
UGT, CGTB, NCST e CTB), da qual também participaram
os ministros Luiz Dulci (Secretaria-Geral da Presidência
da República) e Luiz Marinho (Previdência Social),
além de um representante do Ministério do Trabalho,
surgiram, segundo Mangabeira, as primeiras convergências.
Elas constam do documento intitulado "Diretrizes a Respeito
da Reconstrução das Relações entre
o Trabalho e o Capital no Brasil", que será divulgado
oficialmente hoje.
O documento, antecipado ao Valor com exclusividade, traz
as primeiras propostas de mudanças. "Não
se trata de um amontoado de propostas, mas de um modelo institucional
coerente. Houve um grau surpreendente de convergência.
É o retrato esperançoso de uma negociação",
observa Mangabeira Unger. "Nunca foi nosso objetivo construir
unanimidades. O propósito final é definir um
ideário objetivo que oriente a agenda legislativa."
O ministro, que é professor licenciado da Universidade
de Harvard, diz que a economia brasileira corre o risco de
ficar presa entre economias de trabalho barato e aqueles de
tecnologia e produtividade elevadas. O risco é agravado
pelo fato de economias de trabalho barato, como a China, estarem
se transformando, em alguns setores, em economias de alta
produtividade. O interesse do país, sustenta Mangabeira,
é valorizar o trabalho e o aumento da produtividade.
O regime trabalhista, criado por Vargas e instituído
pela Consolidação das Leis do Trabalho (CLT),
é um obstáculo a esses dois objetivos. Ele nunca
incluiu a maioria dos trabalhadores em seu sistema de proteção,
uma vez que a maior parte da População Econômica
Ativa (PEA) atua no mercado informal. "A maioria não
só está fora, como está também
condenada à indignidade, à injustiça
e à insegurança do trabalho informal. Essa é
uma calamidade brasileira - econômica, social e moral",
critica o ministro. "O modelo institucional estabelecido
das relações entre o capital e o trabalho, em
vez de ser parte da solução, revelou-se ser
parte do problema."
No debate atual, lembra o ministro, há dois discursos
que acabam paralisando tentativas de mudança. Um é
o da "flexibilização" dos direitos
trabalhistas, defendido pelos empresários, interessados
em reduzir os custos de produção. O outro é
o discurso do "direito adquirido", a defesa renhida,
diz Mangabeira, do regime da CLT como baluarte contra a campanha
para flexibilizar direitos.
Esse discurso protege os trabalhadores que estão dentro
do sistema, mas ignora a grande maioria que está fora
dele. "O problema está em descobrir como soerguer
os assalariados que estão fora dos setores intensivos
em capital sem minar a posição dos que estão
dentro desses setores", diz o ministro.
Para enfrentar o problema, governo e centrais sindicais concordaram
que é preciso resgatar a maioria dos trabalhadores
da economia informal. Para fazer isso, é preciso desonerar
a folha de salários. Mangabeira conta que não
foi fácil encontrar uma convergência de como
se fazer isso. Mesmo depois de concluída a reunião
da última quinta-feira, havia centrais contrárias
ao resultado do encontro.
Atualmente, as empresas recolhem ao Instituto Nacional da
Seguridade Social (INSS), a título de financiamento
da Previdência Social, o equivalente a 20% da folha
de pessoal. A idéia é acabar com essa contribuição,
criando em seu lugar uma outra fonte para o INSS. Inicialmente,
os sindicalistas defenderam, nas reuniões com Mangabeira,
a substituição por um tributo que incida sobre
o faturamento das empresas. O problema é que ela causa
distorções numa economia que pretende estar
na vanguarda da produtividade mundial.
"Nossas longas discussões consideraram preocupantes
os dois maiores defeitos dessa fórmula. O primeiro
é a incidência desigual sobre as empresas - maior
sobre as intensivas em capital. Essas empresas empregam relativamente
menos, mas representam vanguarda na escalada da produtividade.
O segundo defeito é compartilhar aspectos de um imposto
declaratório e ser, portanto, suscetível de
evasão", revela o ministro.
Mangabeira diz que o regime trabalhista que inibe o acúmulo
de tecnologia e a aceleração da inovação
tecnológica pode beneficiar parte da força de
trabalho a curto prazo, mas prejudica os trabalhadores como
um todo a médio e longo prazo. "São os
trabalhadores os maiores beneficiários do aumento da
produtividade (desde que fortalecidos os mecanismos institucionais
para que se possam apropriar de parte do excedente econômico)
e as maiores vítimas de estancamento na elevação
da produtividade."
O debate com as centrais evoluiu para uma "solução
radical": o financiamento da Previdência Social
por meio de impostos gerais. O plano é fazer isso por
meio de imposto que distorça menos os preços
relativos. Chegou-se a falar na CPMF, mas o tributo foi extinto
no fim do ano passado. Depois, na criação de
um imposto sobre transações financeiras. No
fim, convergiu-se para o IVA federal, a ser instituído
pela reforma tributária em discussão no Congresso
Nacional - se o IVA não for criado, a contribuição
patronal sobre folha será substituída por outro
imposto geral já existente. "IVA é, por
definição, o tributo mais neutro", sustenta
Mangabeira.
O ministro diz que as mudanças no financiamento da
Previdência não serão negociadas no bojo
da reforma tributária, mas de forma paralela. Do contrário,
adverte, elas não acontecerão. Ele defende também
que a nova fonte de financiamento da Previdência assegure
o mesmo volume de recursos recebidos hoje pelo INSS. É
preciso assegurar, defende Mangabeira, que o progresso na
organização do trabalho não sirva de
pretexto para um retrocesso no ordenamento da Previdência.
Outra desoneração da folha de pessoal, negociada
com as centrais, diz respeito ao salário-educação
e às contribuições das empresas para
o Sistema S. Ambos sairão da folha e passarão
a ser financiados também por impostos gerais. Já
os benefícios diretos dos trabalhadores, como 13º
salário e férias remuneradas, ficarão
na folha. "Ao menos, por enquanto", assinala o ministro.
Um outro desafio, segundo Mangabeira, é reverter a
queda dos salários na renda nacional, um fenômeno
que ocorre, no Brasil, na contramão da tendência
internacional, há meio século. "As limitações
no aumento da produtividade do trabalho não bastam
para explicar esse resultado. Há muito tempo que a
subida do salário real no Brasil costuma ficar aquém
dos avanços da produtividade", explica.
Para mudar esse quadro, diz o ministro, não basta
adotar políticas que buscam elevar o salário
nominal, como o governo Lula vem fazendo com o salário
mínimo. Segundo ele, iniciativas como essa são
facilmente anuladas pela inflação e por políticas
monetárias comprometidas em manter a estabilidade da
moeda. Por isso, ele defende a adoção de medidas
institucionais. "São as instituições
que ajudam a determinar a fatia do bolo", aposta.
As propostas debatidas com as centrais prevêem um conjunto
de medidas para as três faixas salariais, sem a definição,
ainda, dos valores das mesmas (ver quadro). Entre as iniciativas
a serem tomadas, está a proteção legal
dos trabalhadores temporários e terceirizados. "No
Brasil, como em todo mundo, eles representam parcela crescente
da força de trabalho. É a mudança dos
paradigmas de produção, e não apenas
o enfraquecimento da posição institucional dos
trabalhadores, o que também explica essa tendência",
justifica o ministro.
Mangabeira diz que a busca de convergência com as centrais
e os empresários - "as minorias organizadas",
segundo suas palavras - é a única forma de avançar
em prol da modernização das relações
entre capital e trabalho no país. "A minoria dos
trabalhadores organizada vai sempre conseguir barrar a flexibilização
de seus direitos", avisa.
Nas discussões que o governo vem promovendo, fica
claro que os dois lados terão que ceder em algumas
áreas. O ministro reconhece as dificuldades políticas
da empreitada. "Os dirigentes sindicais e os líderes
empresariais consultados não menosprezam os dissabores
dessa reorientação. A maior parte, porém,
vê nela a maneira mais direta, clara e corajosa de resolver
problema que ameaça nosso futuro nacional", assegura.
Mangabeira diz, no entanto, que o governo, na busca da "superação
do regime de Vargas", não atuará como "secretário"
das elites sindicalistas e patronais. Na falta de consenso,
debaterá sua proposta com a sociedade e o Congresso.
Na reunião de quinta-feira passada, conta, o mais empolgado
com o avanços contidos nas propostas era o presidente
Lula.
Cristiano Romero
Valor Econômico
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