O artista, que foi descoberto tocando chorinho com a família
no centro de São Paulo, acabou viciado em drogas. Após
ser resgatado das ruas, ele tenta recuperar a carreira musical.
Assista
ao vídeo (informações do Portal G1)
Ouça
as músicas do CD Pinguinho de Gente de Charles da Flauta
Uma vida tocada na flauta
O vício ia tirando
Charles dos palcos; entrou, enfim, no círculo vicioso
da marginalidade até ir para a rua
A flauta é o único objeto
que sobrou de um fugaz passado glorioso. O resto está
irreconhecível numa caverna debaixo do viaduto Costa
e Silva, o Minhocão, a poucos metros da igreja da Consolação,
onde mora Charles Pereira Gonçalves, na região
central.
As pontas dos dedos que tiravam notas
musicais estão agora queimadas pelo crack. O sopro
está comprometido pela tuberculose que contamina o
pulmão. Trajado com roupas sujas e fétidas,
Charles, olhos vazios, desistiu de tomar banho. Parece ter
bem mais idade do que seus 34 anos.
A combinação de doenças
-além da tuberculose, ele está com pneumonia-
deixou-o esquelético e silencioso, sem vontade de conversar.
Os sons que emite vêm de uma tosse constante. Quando,
porém, vez por outra, ele toca seu instrumento, voltam
os fragmentos da memória dos tempos em que, ainda menino,
dividira o palco com músicos como o pianista Arthur
Moreira Lima, o saxofonista Paulo Moura e o flautista Altamiro
Carrilho.
Altamiro Carrilho ficou tão
impressionado ao ouvi-lo tocar um chorinho que comentou: "Só
pode ser reencarnação". Até então,
não tinha visto alguém tão jovem e sem
nenhum estudo musical tocar tão bem -e muito menos
acreditava em reencarnação.
O maestro Júlio Medaglia explica
essa habilidade pelo ouvido absoluto, termo técnico
que designa rara sensibilidade de distinguir as notas. Isso
torna ainda mais difícil entender como Charles consegue
viver naquela caverna embaixo do Minhocão, onde, por
causa do trânsito ininterrupto de veículos, o
barulho não pára.
Por muito pouco, ele não viveu
em ambientes radicalmente diferentes daquele, distantes da
poluição sonora do viaduto. Medaglia dizia que,
com estudo, o menino se transformaria em um instrumentista
de renome mundial e conseguiu-lhe como professor, na Alemanha,
o primeiro flautista da Orquestra Filarmônica de Berlim.
"Pode ser um dos grandes flautistas do mundo", apostou
Medaglia.
Às vésperas de viajar
para a Alemanha, porém, Charles começou a hesitar
e a demonstrar um comportamento estranho. A droga começava
a entrar na sua vida.
Quando indagado sobre o motivo por
que caiu nas drogas, ele explica, entre frases confusas: "As
pessoas pensavam que eu estava fora do Brasil e deixaram de
me procurar. Fiquei desanimado, comecei a não ir mais
para a escola e a usar drogas. Experimentei crack e me perdi".
Acompanhado de dois de seus irmãos
(um deles, gêmeo), Charles tocava nas ruas do centro
de São Paulo, em 1984, quando tinha dez anos de idade.
Diante do talento do filho, o pai, viúvo, treinou os
irmãos para buscar dinheiro na rua.
A visibilidade das ruas levou-o a gravar um disco no começo
da década de 1990 e a ser chamado para shows e programas
de televisão.
O vício ia tirando-o dos palcos.
"Só queria crack." Começou a faltar
dinheiro. Entrou, enfim, no círculo vicioso da marginalidade
até ir para a rua. Ele agora se diz disposto a dar
aula particular em alguma escola.
"Queria ensinar flauta para crianças
pequenas." Está consciente, entretanto, de que,
viciado e tuberculoso, não pisaria numa escola. "Antes
preciso cuidar de minha saúde."
Seu depoimento só mostrou mesmo
emoção quando ele falou de sua única
criação recente, ao se referir ao filho de um
ano de idade. "Nunca vi o rosto dele, mas acredito que
ele possa vir a ser um grande flautista."
Talvez por causa do sonho de que o
talento, desperdiçado, pudesse ser salvo no desconhecido
filho, ele tirou a flauta do bolso do paletó e tocou
um chorinho. Nessa vaga esperança, era como se sua
vida ainda pudesse ser tocada na flauta.
PS - Charles acabou tomando, por acaso, todo o espaço
desta coluna. A idéia inicial era apresentá-lo
como um exemplo de desperdício de talento para comentar
o lançamento, na semana passada, da extensão
do programa Bolsa Família para jovens. A justificativa
dada pelo governo era reduzir a evasão escolar. Estava
municiado de números sobre evasão, que, em alguns
lugares, está crescendo, além de informações
sobre como o ensino médio, tão longe da realidade,
expulsa os adolescentes do prazer de aprender. A tragédia
resume-se aos 7 milhões de jovens em regiões
metropolitanas que não estudam nem trabalham, presas
fáceis da marginalidade. Ficou tão difícil
tirar espaço de Charles como deve ter sido desviar
dele a atenção nos tempos em que encantava platéias.
Mesmo doente, participou da gravação de uma
faixa de um CD em 2006: quem ouvir a música (clique
aqui) sentirá melhor do que em números o
que é o desperdício de talentos.
Coluna originalmente publicada na Folha de S.Paulo,
editoria Cotidiano.
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