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De cada 100 novos empregos na cidade
de São Paulo, 70 são ocupados por mulheres,
quase todas com diploma de ensino superior ou médio.
Persistem disparidades salariais entre homens e mulheres.
As recentes estatísticas, porém, indicam redução
dessa diferença. Enfrentando preconceitos, vão
assumindo cargos de chefia, normalmente dominados por homens.
Elas são maioria não só no ensino médio
e superior mas também nos cursos de pós-graduação.
As notas dos alunos nas universidades públicas indicam
que o desempenho delas é superior ao dos homens.
São a maioria do eleitorado, o que significa poder
direto de voto. Isso sem contar a influência que exercem
sobre os filhos e maridos -influência comprovada nas
mais recentes pesquisas de avaliação de mudança
dos padrões de consumo.
Esses fatos são ingredientes do enigma de Marta, que
consiste no seguinte: como uma candidata tão bem avaliada
administrativamente, apoiada pelo governo federal (também
bem avaliado), montada em muito dinheiro de campanha, disputando
a prefeitura de uma cidade em que as mulheres mandam cada
vez mais, perdeu a eleição?
O enigma não se refere apenas a São Paulo, mas
a todo o país e servirá também para orientar
a próxima sucessão presidencial.
Quando os ânimos serenarem e houver maior distanciamento,
aposto que vamos concluir que, entre as várias explicações,
está o fato óbvio de que Marta Suplicy apanhou
por todos os seus erros (excesso de taxas e má gestão
na saúde, por exemplo) e pelos acertos na campanha
de seu adversário, mas sobretudo por não saber
escutar. A dificuldade de ouvir, embalada pela presunção
da vitória, fez que dividisse o mundo entre aliados
e inimigos; em muitos casos, entre bajuladores e críticos.
Essa soberba tornou mais difícil para a prefeita lidar
com o preconceito contra as mulheres, do qual também
foi vítima.
Não escutou a classe média, que, como se vê
agora, foi a peça-chave das eleições
paulistanas -muito mais do que a periferia ou os milionários.
Na semana passada, a assessoria mais próxima da prefeita
lançou a tese de que Marta perdeu por causa da sua
vida conjugal. E, no caso, a culpa seria de Eduardo Suplicy,
que, ao "posar de vítima" por tanto tempo,
teria transmitido a impressão de que ela é insensível,
cruel até. Estaria aí a gênese da imagem
de arrogância.
A versão, destinada a encontrar os culpados pela derrota,
é obviamente um ridículo exagero. Volto a dizer,
porém, que, ao se separar, ainda mais de um político
de prestígio, Marta aguçou preconceitos. Fosse
um homem que se separasse nessa condição, haveria
também reação, mas provavelmente não
na mesma proporção.
A disposição de enfrentar brigas falando duro
poderia ter sido encarada como sinal de coragem, de ousadia,
a serviço do interesse público. Mas, para muitos,
reforçou a imagem de arrogância. Por quê?
Para alguns segmentos da população, a mulher
deveria ser mais delicada, ter um comportamento conformado,
servil até. Aqui, entra uma dose de preconceito. Em
certos momentos, houve mesmo coragem incompreendida. Mas quem
acompanhou os bastidores do governo municipal viu como ela
tropeçava nos limites entre franqueza e rispidez, autoridade
e prepotência, determinação e falta de
educação, coragem e impulsividade.
Parecia alternar o papel da mulher rica disposta a resgatar
a periferia desolada, onde fez mesmo ações interessantes,
algumas das quais históricas, com o da mulher afetada
da elite paulistana, que não gosta de ser contrariada
e reage impulsivamente. No jogo de imagens, é como
se fosse uma mesma moeda: de um lado, a aristocrata esclarecida
na batalha contra a injustiça social e, de outro, a
patroa irascível brigando com a empregada.
Como a derrota vai diminuir o número de bajuladores,
talvez Marta tenha condições de fazer uma reflexão
solitária. Talvez perceba que, se tivesse sabido escutar
mais e melhor, gastando mais tempo para explicar com mais
paciência sua administração, ouvindo com
mais respeito as críticas, os preconceitos, ainda que
continuassem pesando, pesariam muito menos.
Para seu azar, pegou pela frente Serra, que, além de
ter uma imagem positiva e ser apoiado por um governador também
com boa imagem, apanhou tanto por ter escutado que descobriu
o pragmatismo da humildade. Ele aprendeu, por exemplo, que
a sua crônica impontualidade era vista como sinal de
soberba, de desrespeito, e não de desligamento. Se
vai continuar assim, vamos ver.
A derrota é passado e Marta ainda tem um futuro político
pela frente. Se passar por um banho de auto-análise,
vai sair dessa melhor do que entrou. Do contrário,
vai continuar sendo vítima de si própria -e,
como uma pessoa imatura, achando que a culpa é só
dos outros.
PS - Lições do enigma Marta para as próximas
eleições. Os candidatos terão de apresentar
uma boa agenda para o público feminino -e Serra, com
o tema saúde, fez isso. Terão de saber conversar
com a classe média, cada vez maior devido ao aumento
da escolaridade. Por ser filho de imigrantes que trabalharam
na feira, ex-aluno de escola pública que entrou na
faculdade, Serra conseguiu se identificar com esse segmento
metropolitano. Ele tem muito mais a cara de São Paulo,
onde quase todos são imigrantes ou migrantes (ou filhos
deles) do que um mulher que ostenta -na fala, nas roupas e
nos trejeitos- o Jardim América. A classe média
arredia é parte da explicação do mistério
Marta -e, quem sabe, o desafio do PT se quiser reeleger Lula.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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