Desempregada, Antonia Joyce Venancio
via despencar gradativamente seu padrão de vida. Logo
no primeiro mês cortou a assinatura de uma revista e
deixou de ir ao cinema -"um dos meus prazeres prediletos".
Parou de ir a restaurantes e desistiu do plano de saúde.
Resistiu o quanto pôde, mas cedeu: nada lhe doeu mais
do que ter de deixar a faculdade de psicologia. "Isso
para mim era o fim da linha." Quase não tinha
mais nada para reduzir em seu orçamento quando foi
salva por uma brincadeira de infância e acabou virando
empresária.
Negra, de olhos castanhos ("a cor dos olhos é
herança de meu avô que veio do Egito"),
Antonia cresceu com uma avó que lhe fazia, com meias
velhas, bonecas negras. As primas e primos, além de
alguns amigos negros, seduziam-se pela destreza daquela habilidosa
avó, com suas originais bonecas. "As bonecas faziam
um sucesso danado."
A boneca virou, na família, mais um detalhe para discutir
preconceito racial. "Só havia bonecas brancas,
quase sempre loiras." A própria Antonia sentiu,
diversas vezes, o peso da cor. Certa vez, a professora pediu
que os alunos trouxessem recorte de jornal ligado à
profissão que gostariam de seguir. Antonia levou uma
propaganda com a foto de uma aeromoça. Seja por preconceito,
seja por sentir que a menina estava fantasiando um futuro
impossível, a professora deu-lhe, ali mesmo na classe,
a foto de uma mulher negra para incluir em seu trabalho. Era
a foto de uma empregada doméstica. "Nunca mais
me esqueci daquilo; era como se uma negra só pudesse
ser empregada doméstica."
Acuada há mais de 12 meses pelo desemprego, inspirou-se
na avó e chamou a família para ajudá-la
a criar bonecas negras, quem sabe ganharia algum dinheiro.
"Ia para tudo quanto era canto vendendo meu produto."
Com o pouco que juntou, resolveu fazer uma aposta: abriu,
há quatros meses, uma loja numa garagem de menos de
15 m2.
Lentamente foi chegando a clientela, na onda do politicamente
correto e, mais que isso, do crescimento da classe média
negra. Na semana passada, foi surpreendida por uma entidade
de educação empresarial que lhe ofereceu ajuda
para dar escala às bonecas. Por fim, ligaram para ela
sugerindo "franchising", palavra que, até
então, tinha ouvido várias vezes, mas não
sabia o significado exato. Sabe agora que significa mais dinheiro,
para seus negócios e especialmente para voltar à
faculdade. "Fui salva por uma brincadeira."
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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