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A pesada troca de agressões
entre José Serra e Marta Suplicy, particularmente na
semana passada, transmite a impressão de que eles têm
visões opostas. Errado: ideologicamente, os dois candidatos
são muito parecidos, quase iguais. Poderiam até
estar no mesmo partido.
No segundo turno, o eleitor atento perceberá que a
diferença não reside na opção
pelos mais pobres e na necessidade de melhorar os serviços
de saúde e educação, mas apenas nas habilidades
gerenciais -ou seja, em como administrar melhor os recursos
para reduzir a exclusão social.
Na semelhança entre os dois candidatos, criando o voto
"Marterra", está a verdadeira revolução
paulistana. É uma revolução não
de obras, de métodos de gestão, mas de um olhar.
Quem analisar friamente a biografia de José Serra e
a de Marta Suplicy vai perceber que ambos estimularam ações
para diminuir a pobreza e a desigualdade. Se poderiam fazer
mais e melhor com o poder que detiveram é um outro
debate.
Uma das vítimas do regime militar, Serra está
associado a conquistas como os genéricos, a quebra
de patentes dos remédios contra a Aids, o seguro-desemprego
e a bolsa-alimentação. Apesar de ser acusado,
nesta campanha eleitoral, de conivência com a política
de juros da gestão FHC, algo que, de fato, complicou
as finanças de São Paulo, a verdade não
é bem essa. Mesmo dirigentes do PT sabem que o candidato
do PSDB fazia, dentro do governo, oposição à
política econômica.
Marta, por sua vez, está associada à identificação
com as questões de gênero e com as minorias,
bem como a conquistas como o bilhete único, a inauguração
de melhores vias exclusivas para os ônibus, os programas
de renda mínima e a disseminação de programas
culturais e esportivos na periferia. O CEU, se é uma
política educacional que suscita justificadas dúvidas,
é inegavelmente um avanço como projeto de inclusão
comunitária.
Os dois tiveram experiências em entidades não-governamentais
e viveram nos Estados Unidos, onde o trabalho comunitário
faz parte da rotina de todos os cidadãos. Isso influenciou
a visão deles sobre a importância de parcerias
com a comunidade, destoando da visão tradicional das
esquerdas. Os contatos acadêmicos internacionais e o
fato de terem vivido no exterior deram a Marta e a Serra uma
visão de mundo cosmopolita.
Mas por que, afinal, a semelhança ideológica
entre Marta e Serra revela a revolução de um
olhar? Simples: porque, seja por marketing, seja por medo
(ou pelas duas coisas juntas), a elite paulistana desenvolveu
nos últimos anos um senso de responsabilidade.
Não existe um só empresário importante,
uma só empresa importante ou mesmo uma escola importante
que não apresente, com menor ou maior consistência,
um programa orientado pela preocupação com a
pobreza e com a violência. A violência nos fez
seres acuados pelos seqüestros, pelos assaltos, pelos
assassinatos. Diante da selvageria, os mais poderosos, mesmo
cercados de blindagens e de segurança, sentem-se frágeis,
vulneráveis.
São Paulo é a referência brasileira em
terceiro setor porque os empresários chegaram à
conclusão de que o papel da empresa não é
só obter o lucro. E também (aí entra
o marketing) porque os consumidores se importam cada vez mais
com a contrapartida comunitária dos negócios.
A elite empresarial mescla-se com a elite intelectual, que,
em sua maior parte, aceita as regras do jogo de mercado e
vê como solução mais investimentos sociais,
especialmente em educação.
Marta e Serra são a expressão desse consenso
que se dissemina pelo país, mais visível em
São Paulo devido à tradicional distância
da cidade dos poderes federais (nunca fomos corte), à
sua força econômica e à concentração
de entidades do terceiro setor.
Do ponto de vista do eleitor não preocupado com a sucessão
presidencial ou estadual, a escolha do próximo prefeito
é, portanto, muito mais sutil do que uma briga entre
esquerda e direita, entre quem é e quem não
é sensível aos problemas dos mais pobres.
A discussão relevante é saber qual o melhor
candidato para gerir os escassos recursos de uma cidade quebrada.
É um debate complexo, bem menos charmoso do que a guerra
entre o bem e o mal. Mas é aí, somente aí,
que se encontrará a diferença entre José
Serra e Marta Suplicy -o resto é marketing.
PS - Como uma das pragas eleitorais é o culto a obras
físicas (daí que tudo é faz, fez e fará),
nem Marta nem Serra se preocuparam em deixar claro, certamente
porque isso não rende votos, qual é o melhor
investimento para um prefeito diminuir mesmo a exclusão.
Como um prefeito tem ação muito limitada para
gerar emprego e mesmo para distribuir renda, sobra-lhe melhorar
a educação. E só se melhora a educação
com investimentos maciços e permanentes nos professores.
O problema é que essa é uma obra que não
se vê porque está dentro da cabeça dos
mestres. E demora muito tempo para aparecer. É o antimarketing,
mas é o que de mais sério se pode fazer para
elevar, a longo prazo, a qualidade de vida de uma cidade.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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