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Era um começo de noite e
o Spot ainda estava quase vazio. A sorridente garçonete
aproximou-se. Antes que eu dissesse que, como aguardava amigos,
não pediria nada ainda, ela, com ar compenetrado, inclinou-se
e, em voz baixa e um tanto constrangida, fez-me um pedido:
"Desculpe-me por incomodá-lo, mas preciso de sua
ajuda".
Luciana Gil prepara para o curso de psicologia social da PUC
uma dissertação de mestrado sobre protagonismo
juvenil. Tinha lido alguns dos meus textos sobre o assunto,
mas não sabia como me encontrar nem, se me encontrasse,
se iria atendê-la. Queria orientação sobre
experiências bem-sucedidas no Brasil e referências
bibliográficas.
Com um olho em mim e outro nos clientes que começavam
a chegar, Luciana rapidamente tomava nota do que eu lhe dizia.
Alegre, agradeceu, despediu-se, mas logo retornou, apresentando
desculpas: "Você quer alguma coisa?". Para
comemorar a inusitada cena, mudei de idéia e pedi uma
taça de vinho branco.
Enquanto aguardava, agora acompanhado pelo vinho gelado, aproveitei
para escrever essa cena no meu caderno de anotações
sobre personagens paulistanos.
À espera de uma data especial, demorei várias
semanas para fazer Luciana habitar algum dos meus textos sobre
São Paulo.
Com seus 24 anos, Luciana fala tanto ou mais sobre o futuro
desta cidade do que José Serra e Marta Suplicy, um
dos quais, nesta data especial, sairá vitorioso na
disputa pela prefeitura paulistana. Aquela conversa apressada
no Spot é um minúsculo fragmento, aparentemente
isolado, muito longe da média, mas resume toda uma
tendência: afinal, em quantos lugares do país
uma garçonete pede ajuda para seu projeto de pós-graduação
ao mesmo tempo em que atende os clientes?
Se Luciana é sinal de que uma nova São Paulo
se vai desenhando, o mesmo se pode dizer da semana que antecedeu
o pleito de hoje, também um magnífico exemplo
desse novo perfil da cidade. Estamos cercados de inúmeras
exposições de arte, como nunca se teve notícia,
em meio à criação, em ritmo também
desconhecido, de espaços culturais. Some-se a isso
a mostra internacional de cinema, que tem levado batalhões
de jovens às salas.
Uma das atrações da semana é o filme
"Bem-Vindo a São Paulo", uma colcha de retalhos
feita por diferentes cineastas estrangeiros. Entre os participantes,
Caetano Veloso, que, de câmera à mão e
do alto de um prédio, recita poemas. No filme, aparece,
como não poderia deixar de ser, a esquina da Ipiranga
com a São João, a encruzilhada de "Sampa".
A cidade que o novo prefeito irá governar (ou que Marta
continuará a governar) é, apesar de suas enormes
manchas de miséria e violência, cada vez mais
educada, sofisticada e cosmopolita -ou seja, mais parecida
com a cara de Luciana. Um dos fatos mais interessantes desta
eleição foi o suadouro a que foram submetidos
os candidatos nas sabatinas e entrevistas, obrigados a explicar,
com um mínimo de detalhes, suas propostas. Truques
de marketing foram desmontados. A agenda urbana virou conversa
de botequim e, por isso, não se conseguiu federalizar
a eleição. A cidade esteve em primeiro lugar.
Indicadores de escolaridade, expectativa de vida e crescimento
populacional revelam que São Paulo tende a melhorar.
Até porque se propagam os programas sociais do governo,
as empresas apóiam projetos de inclusão e evolui
o preparo das entidades comunitárias. A economia paulistana
vai gerando mais empregos na área de serviços
(ocupados em sua maioria por mulheres), que, aos poucos, substituem
a perda das indústrias.
Coloquem-se num mesmo saco melhoria na escolaridade, população
estável, disseminação de programas sociais
e articulação comunitária para que se
perceba que os avanços são inevitáveis
-independentemente de quem seja eleito.
Isso não significa que seremos um paraíso, longe
disso. Significa apenas que o capital humano será mais
sofisticado, e a administração da miséria,
menos difícil -no mínimo, em razão da
queda da taxa de fecundidade e da redução da
migração.
Ao contrário do que se possa pensar a partir desse
comentário sobre indicadores positivos, os prefeitos
terão ainda mais dificuldade de satisfazer os cidadãos.
E isso não só porque São Paulo está
quebrada, as carências são monumentais e os eleitores
se embalam nas promessas de campanha mas, em especial, porque
os habitantes, instruídos e conscientes, vão
cobrar mais e mais eficiência e seriedade.
Portanto, caro vencedor eleito (ou vencedora) no dia de hoje,
bem-vindo a São Paulo, onde o futuro se desenha menos
nos palácios e mais em jovens, como Luciana, que "ralam"
de noite no restaurante para pagar a pós-graduação
de dia. Esses são os nossos melhores atores e o nosso
melhor roteiro.
PS - Todos podem ter as mais profundas divergências
em relação a Marta e a Serra, mas quem for sério
não pode deixar de reconhecer que tê-los juntos
no segundo turno é um privilégio, olhando a
média da classe política brasileira. Apesar
de todas as baixarias e manipulações, revela-se
o melhor de nosso capital humano a serviço da política.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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