Por que
um garoto de classe média, com boas perspectivas e pais carinhosos,
transforma-se num traficante de drogas?
A pergunta inevitável para quem assiste
ao filme "Meu Nome Não É Johnny", lançado comercialmente na
semana passada, é: por que um garoto de classe média, inteligente,
carismático, com boas perspectivas profissionais e pais carinhosos
não apenas se vicia como se transforma num traficante de drogas?
Inspirador do filme, João Guilherme Estrella, hoje com 46
anos, prefere não culpar ninguém. Não acusa a sociedade nem
a sua família. "Fui vítima das minhas escolhas."
Entre goles de uma bebida energética
amarelada que sorvia de um copo com muito gelo, ele se dispôs
a contar passagens de sua infância e adolescência para que
eu tivesse pistas sobre os caminhos que o levaram ao vício,
à cadeia e, enfim, ao manicômio. Nem de longe Estrella se
propõe a fazer um manual de auto-ajuda, nem se sente em condições
de desvendar os mistérios psicológicos.
Suas pistas não asseguram uma resposta
final, mas certamente servem de reflexão sobre as atitudes
que levam os jovens a comportamentos destrutivos.
As histórias escolares mostram a dificuldade
de João Guilherme de lidar com a autoridade -e também fica
clara a dificuldade dos professores de estabelecer um limite.
Ele conseguia livrar-se dos obstáculos graças ao seu poder
de sedução, sempre encontrando uma brecha. Tal poder de sedução
o levou à condição de líder entre os colegas.
Influenciava até professores. Como
Estrella tinha uma inteligência acima da média, bastava estudar
o mínimo para não levar pau. Num ano, ele precisava de nota
dez em matemática, depois de vários zeros seguidos. Como tirou
a nota máxima, foi levado para a diretoria, acusado de cola.
"A professora simplesmente não acreditava que eu pudesse ir
tão bem."
Suas lembranças sobre o relacionamento
com os pais são de carinho. Teve todos os recursos para estudar
nas melhores escolas. Entre as histórias que relatou, dá para
perceber que sobravam carinho e apoio familiar, mas faltava
limite.
A imagem que ele tem do pai é a de
uma figura amorosa, amiga, que valorizava a liberdade e, portanto,
o prazer da experimentação. Não largou o cigarro mesmo advertido
sobre a gravidade dos seus problemas pulmonares e morreu quando
o filho ainda era adolescente. Nesse momento, o casal estava
separado, e João Guilherme morava na casa do pai.
No decorrer da conversa, sempre evitando
procurar culpados que diminuíssem a sua responsabilidade,
ele revelou: "Acreditava que, por mais perigo que enfrentasse,
eu encontraria uma saída nos 45 minutos do segundo tempo".
A saída no último minuto poderia ser a nota dez de matemática.
Ou a oferta de uma entrada para um jogo do Flamengo ao funcionário
da escola que o levava à diretoria para acusá-lo de estar
fumando maconha.
Com aquela mistura de onipotência
e ausência de limite, vivendo numa sociedade permissiva e
com alta sensação de impunidade como o Rio, João Guilherme
apostava que controlava a droga. Imaginava-se mais forte do
que o vício, apesar das altas doses misturadas com muita bebida.
E, se houvesse qualquer problema, daria um jeito.
Para sustentar o consumo cada vez
maior, tornou-se traficante. Foi quando desapareceram as perspectivas
de futuro. O futuro passou a ser o presente da droga. A descoberta
do limite veio mesmo quando ele, já adulto, não encontrou
a saída mágica aos 45 minutos do segundo tempo que evitasse
sua prisão e internação num manicômio. Sobrou-lhe tentar se
encontrar e lançar um olhar inteligente sobre si mesmo para
reconstruir um projeto de vida, que incluiu compartilhar a
sua história de um jovem à procura de um limite. O ex-traficante
virou educador.
PS - No final da conversa, Estrella
deixou escapar que está com vontade de ter um filho. Perguntei-lhe
como reagiria se soubesse que seu filho usava drogas. Atualmente,
ele vê com muita desconfiança até a liberdade de experimentar
drogas químicas, como cocaína, por acreditar que, em alguns
casos, pode ser um caminho sem volta. Não se imagina fazendo
discursos raivosos ou moralistas ao filho. "Estou bem mais
preparado do que meus pais para perceber quando alguém usa
drogas e para conversar sobre os perigos do prazer", afirma.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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