A sorte dos governantes é
que a classe média não sabe responder a uma
pergunta simples: quantos dias alguém trabalha num
ano apenas para manter o poder público?
Se soubesse mesmo responder a essa questão e nunca
se esquecesse da resposta, sua irritação contra
os governantes seria muito maior do que se viu, transformada
em voto, nas eleições deste ano. Essa irritação
é o que explica, em parte, a derrota do PT em cidades
como São Paulo, Curitiba ou Porto Alegre.
Suponha um indivíduo com a renda de R$ 2.500 mensais.
Entre impostos diretos e indiretos (aqueles embutidos no preço
dos produtos), ele deve pagar 30% do que ganha. Em quantos
dias trabalhados apenas para pagar as despesas dos governos
isso se traduz? Vamos lá.
Descontando-se 30% em impostos - valor médio dos tributos
pagos pela classe média-, temos o seguinte: R$ 9.000
por ano. Dividamos esse valor pela renda mensal de nosso contribuinte,
que é de R$ 2.500. Resultado: 3,6. Ou seja, ele despende
3,6 meses por ano apenas para pagar seus impostos, o equivalente
a 107 dias.
Imagine, caro leitor, que você nunca se esquecesse
de que, durante esses 107 dias, mais de três vezes o
seu período de férias, você trabalha apenas
para manter o poder público, ao qual paga muito e do
qual recebe pouco -afinal, muitas vezes, o que recebe (quando
recebe) é um serviço ruim.
É natural que, para esse segmento, o que significar
a mistura de poder com impostos e desemprego entre na mira
-seja do PT, seja de qualquer outro partido. A irritação
é não só compreensível mas justificável.
Além de pagar muito imposto e receber pouco de volta,
a classe média perdeu poder aquisitivo nos últimos
cinco anos; estima-se que tenha perdido, em geral, um terço
de sua renda.
Na quinta-feira, a Folha divulgou estudo do economista Waldir
Quadros, da Unicamp, que trazia uma estimativa devastadora.
Nada menos que 2,5 milhões de pessoas perderam a condição
de classe média (renda superior a R$ 1.000 mensais)
-e isso só no ano passado.
Isso representou uma redução do acesso a certos
ícones, tão reverenciados pela classe média:
escola particular para os filhos, restaurantes, cinemas, teatros,
viagens, clubes. Calcula-se ainda que, nos últimos
cinco anos, cerca de 4 milhões de pessoas tenham abandonado
os planos privados de saúde.
Além dos impostos, a classe média sentiu o
aumento dos preços, acima da inflação,
da saúde e da educação privadas. Se,
por acaso, fosse recompensada por boas escolas e hospitais,
certamente teria menos a reclamar; afinal, o dinheiro estaria
voltando ao bolso.
Há também uma espécie de luto. Houve
um momento, e não está muito distante, em que
a classe média descobriu literalmente o mundo. Foram
os períodos gloriosos do Plano Real, mantidos artificialmente
(depois vimos o tamanho da conta), quando se podia ir a Nova
York ou a Miami com o bolso cheio de moeda forte. Os supermercados
empanturravam-se de produtos importados.
Passado o fugaz gosto do paraíso do consumo do Real,
veio tudo junto: inflação e desemprego. Sentiu-se
ainda mais o peso da carga tributária, que não
parava de crescer na era FHC. Essa decepção
ajudou a eleger Lula, desgastando o PSDB -e, agora, volta-se
contra o PT.
Em pleno luto da classe média, Marta Suplicy, por exemplo,
lançou uma série de taxas, dizendo que esse
dinheiro iria basicamente para os pobres. Essa, entre outras
razões, explica o desgaste da prefeita de uma cidade
em que impera a classe média. Basta lembrar que temos
aqui quase 11 milhões de habitantes e 5,4 milhões
de automóveis registrados.
Não é só. Esse segmento está
cada vez mais escolarizado. Portanto tem uma expectativa crescente
de retorno desse investimento pessoal. O retorno, porém,
são os baixos salários ou o desemprego. Mesmo
quando o indivíduo, com o diploma de faculdade debaixo
do braço, encontra uma vaga, muitas vezes nada ou pouco
tem a ver com o que estudou.
Já preocupado com a sua reeleição, Lula
quer saber o que dizer agora para conversar com a classe média,
formadora de opinião. Não vai conseguir melhorar
rapidamente os serviços públicos. Só
lhe sobra assegurar o crescimento econômico, gerando
empregos, e diminuir os impostos, reduzindo as despesas das
famílias.
Do contrário, é melhor ir confiando no voto
dos excluídos, mais sensíveis a ações
sociais do tipo Bolsa-Família. Eleita com amplo apoio
da classe média, Marta Suplicy tentou neste ano esse
discurso e, como se sabe, não obteve sucesso.
Para a sorte dos poderosos, o Brasil ainda não é
São Paulo. Nem a classe média, mais atenta.
Duro mesmo para quem está no poder vai ser o dia em
que cada contribuinte souber contar quantos dias trabalha
para os governantes, que quase nunca usam com eficiência,
mesmo para os mais pobres, seu dinheiro.
Se acham que a classe média está irritada,
ainda não viram nada: afinal, fazer a conta de quantos
dias trabalhados significa o imposto arrecadado pode exigir
muitos anos de aprendizado de cidadania, mas muito poucos
de escolaridade.
PS - Uma das poucas coisas boas da crise da classe média
é a mudança de paisagem nas escolas públicas.
Para lá, estão rumando alunos que já
não conseguem arcar com as mensalidades. A tradução
disso é mais pressão nos governos e nas sociedades
para melhorar a educação pública.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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