A visão
positiva do futuro funcionava como vacina porque protegia
contra a busca do prazer a qualquer custo
Conversei semana passada com um jovem de classe média
que virou traficante -categoria crescente nos registros policiais.
Estudante universitário, fumava maconha na adolescência,
depois começou a usar cocaína, crack, LSD e
diversos tipos de cogumelo. Encantavam-no especialmente os
alucinógenos: "Um dia eu vi pessoas dançando
no reflexo da Lua".
Para sustentar o consumo, decidiu traficar, mas não
se sentia traficante. "Tudo o que veio com a droga saiu
com a droga." Sumiram os encantos de imagens como os
reflexos da dança na Lua quando testemunhou, no mundo
real, a mistura química de policiais com marginais.
Sempre se sentiu com laços afetivos em casa e conseguia
até manter uma conversa mais sincera com a mãe,
embora nunca tivesse relatado a ela sua atuação
na venda de entorpecentes.
Ele me pediu que mantivesse em sigilo a sua identidade porque
hoje está empregado em cargo de gerência e não
quer expor a família. Está convencido de que
as referências positivas e o acolhimento que encontrou
em casa, apesar das brigas, o ajudaram a recusar o ambiente
sombrio do tráfico e fizeram com que voltasse a ter
emprego e namorada. Essa saída do círculo vicioso
para o virtuoso indica que existe uma vacina capaz de proteger
contra a dependência química.
Essa proteção foi captada pelo psicólogo
Murilo Battisti, que desenvolve tese de pós-graduação
na Universidade Federal de São Paulo. Durante cinco
anos, entre 2001 e 2006, ele acompanhou um grupo de 32 jovens
que consumiam ecstasy e notou características comuns
entre os que abandonaram as viagens das baladas. Ao mesmo
tempo em que deixavam o consumo de drogas químicas,
valorizavam mais a faculdade, a construção de
uma carreira profissional e já começavam a pensar
em formar uma família. Nesse grupo, todos eram universitários.
Pouco surtia efeito, segundo Battisti, um discurso trágico
de advertência sobre os perigos do vício. A consciência
do problema só viria com a percepção
clara das perdas -e a noção da perda vinha acompanhada
da construção de um projeto de vida, ou seja,
do sonho.
A visão positiva do futuro funcionava como vacina porque
protegia contra a busca do prazer a qualquer custo, sem medir
os limites: o sonho é mais eficiente do que o porrete.
A divulgação de dados (como ocorreu na semana
passada) sobre o aumento de 1.700% em 2007, em comparação
com o ano anterior, da apreensão de ecstasy, o aumento
de número de notícias sobre o envolvimento da
classe média no tráfico e o sucesso de filmes
como "Tropa de Elite" e "Meu Nome Não
É Johnny" têm ajudado a colocar o debate
onde deveria estar. Pode-se brigar, com bons argumentos, sobre
as vantagens e as desvantagens da descriminalização
das drogas, mas é consenso que a repressão ataca
o sintoma, não a causa.
Como está se especializando em biopsicologia, Battisti
sabe que a vacina dos sonhos tem muitos limites. Uma parte
dos dependentes, mesmo com perspectivas profissionais e laços
afetivos sólidos, sujeita-se às armadilhas da
genética, já que existe em algumas pessoas uma
natural propensão à dependência química.
O excesso de consumo tende, ao mesmo tempo, a prejudicar o
estudo e o trabalho, gerando, além de distúrbios
neurológicos, baixa auto-estima e maior dificuldade
de construção de um projeto de vida.
Embora, na maioria dos casos, funcione, a vacina é
uma proteção que não pode ser construída
só pelo jovem. Exige atitudes da escola e da família
para um equilíbrio entre a imposição
de limites e o acolhimento.
Repete-se há muito tempo que os pais não estabelecem
limites a seus filhos adolescentes, o que ajuda a entender
o problema, mas não o resolve. "Isso não
significa que ser muito duro funcione", alerta o psicólogo.
A dependência fragiliza o indivíduo e, sem apoio
em casa, ele tende a ficar mais isolado e próximo de
seus amigos.
A escola deve propiciar o maior número possível
de experimentações para que seja possível
transformar vocação e talento em habilidade.
Cabe à escola auxiliar o jovem a construir prazer no
fazer. Já sabemos que as formas de inteligência
são as mais variadas. Existe inteligência em
saber mover o corpo (dançar ou jogar futebol), em usar
a voz (cantar), em administrar conflitos, em liderar, em saber
relacionar-se com os outros -traços esses, aliás,
cada vez mais valorizados pelo mercado de trabalho.
O prazer do sonho é algo tão sedutor como a
irrealidade da dança nos reflexos da Lua, com a vantagem
de que serve de vacina para ajudar a evitar a realidade das
drogas.
PS - Coloquei no site o detalhamento
da pesquisa do psicólogo Murilo Battisti e entrevista
com o jovem, citado nesta coluna, que deixou o tráfico
de drogas.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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