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Freqüentador
assíduo de academias de musculação, ele
começou a se drogar usando anabolizantes injetáveis
para moldar o corpo
Jovem esportista da classe média que entrou no
mundo do ecstasy após desilusão amorosa conta
suas memórias
Era uma manhã de segunda-feira, no ano passado, quando
Igor Nunes Marin se observou detidamente diante do espelho
do banheiro de seu quarto, como se procurasse alguém
desaparecido. Tinha perdido cerca de 20 quilos, os músculos
dos braços pareciam murchos, as olheiras destacavam-se
no rosto abatido. "Será que vou algum dia voltar?",
pensou, ainda se encarando, desolado, no espelho. O que via,
naquela manhã, pouco lembrava o esportista aficionado
por musculação e basquete.
O contraste entre a imagem do espelho e a da memória
ficava mais forte quando ele se lembrava de que, até
pouco tempo atrás, tinha namorada e emprego. Estava
só e desempregado, dependendo do dinheiro dos pais.
Até mesmo seu desejo sexual ele sentia que vinha, pouco
a pouco, diminuindo e justamente por causa do excesso do consumo
de ecstasy, a droga vendida como a pílula do prazer.
Naquele momento, seu corpo tinha se transformado numa espécie
de laboratório de experimentos químicos. Por
determinação de sua psiquiatra, ele tomava uma
série de fortes antidepressivos para tentar se livrar
da dependência das drogas, o que lhe deixava com a sensação
de estar anestesiado. Mas, nas raves que freqüentava,
misturava-os com abundantes doses de uísque, várias
"balas" (como são conhecidas as pílulas
de ecstasy) e até "doces" (LSD).
Num sítio do interior de São Paulo, numa dessas
festas, que se prolongou por mais de 24 horas, ele notou que
estava perdendo o controle. Berrou pedindo socorro aos amigos.
"Bateu um desespero", recorda-se. Ninguém
ouvia seus apelos, a música eletrônica dominava
os sons do salão. Estatelou-se no chão. Lembra-se
apenas da alucinação de que tinha, dentro da
cabeça, um videogame que não sabia desligar.
Não se lembra de como acordou de manhã cedo
sozinho numa praça em Osasco, com a roupa toda suja.
Na semana passada, Igor, 27, começou a organizar e
escrever suas memórias para tentar entender como, no
ano passado, se entregou ao consumo desenfreado de drogas
sintéticas nas raves. "Viver resumiu-se à
espera das festas." Há quatro meses, está
limpo, submetido aos antidepressivos e à terapia.
Jovem da classe média paulista, Igor sempre estudou
em escolas privadas e formou-se em marketing. Sentia-se um
rapaz de família, com o projeto de ter uma casa cheia
de filhos. Espírita, rezava todos os dias.
Freqüentador assíduo de academias de musculação,
não se imaginava fazendo nada de errado ao abusar dos
anabolizantes para moldar seu corpo. Usava obsessivamente
anabolizantes injetáveis ou em comprimidos, sem se
incomodar com os efeitos colaterais, como a irritabilidade.
"Vejo agora que aquela vontade de ter o corpo perfeito
estava escondendo uma fragilidade."
Trocou os coquetéis contínuos de anabolizantes
que deixaram seu corpo de 1,80 m com 110 quilos pelas drogas
sintéticas, ao entrar na trilha das raves pelo interior
e pelo litoral de São Paulo.
Entrou nessa trilha por causa do tédio provocado por
uma recente desilusão amorosa. Nem gostava de música
eletrônica. Na sua primeira rave, levou um Ipod para
ouvir seus pagodes. Até então, só usara
maconha.
Deram-lhe meia pílula de ecstasy. "Não
senti nada." Tomou mais. A partir daí, não
seria mais o mesmo.
No dia seguinte, ao acordar em casa, percebeu-se mais triste
do que nunca, pensando na desilusão amorosa. "A
tristeza não passava." Ficou pior durante a semana.
"Não quis sair de casa, queria ficar trancado
no quarto, com as cortinas fechadas, sem luz." Animou-se,
porém, a ir a mais uma rave, onde logo tomou um ecstasy
com bebida alcoólica. "Experimentei uma felicidade
enorme, era como se eu fosse uma fortaleza, a pessoa mais
interessante da festa." Encantava-o a paisagem humana
de tanta gente jovem e bonita. "Por todos os lados, era
cercado de mulheres lindas."
Fortaleza significava também ser mais forte do que
qualquer vício. "Eu olhava aquele pedacinho de
pílula que entrava no meu corpo de 110 quilos e pensava
que aquilo, uma coisa tão pequena, não me dominaria."
Experimentou até um pó veterinário usado
em cavalos.
À tristeza aguda mesclaram-se episódios de pânico
que reforçavam sua vontade de ficar trancado em casa.
Perdera seu emprego e, ainda por cima, ouvira a seguinte frase
da ex-namorada, impressionada com o efeito das drogas: "Não
sei mais quem é você". Para completar, sua
culpa não parava de crescer, ao ver o sofrimento dos
pais. "Eu via meus pais chorando e chorava também."
As dores se desfaziam nas festas, mas sempre à custa
de doses cada vez maiores de drogas, adquiridas facilmente
por jovens, como ele, de classe média. "A verdade
é que eles não se imaginam como traficantes.
Certamente, eles se sentiriam ofendidos se fossem chamados
de traficantes. Traficante, para eles, é aquele sujeito
violento que vive no morro."
Aos poucos, Igor já não se espantava com algumas
cenas das festas, como a de um rapaz nadando na grama como
se estivesse no mar, a de outro que tentava voar dizendo-se
Superman ou a de jovens adormecidos no lixo.
A euforia passou a misturar-se, também nas raves, ao
pânico. "Numa noite, eu estava próximo da
piscina. Vi suas águas subirem para me agarrar. Saí
correndo. Pedi socorro. Olhava para as pessoas e todas tinham
a cara de monstro."
Sabia que estava na hora de parar, mas não sabia como.
Faltava-lhe força. Seu melhor amigo tentava, em vão,
demovê-lo de ir às festas. Em casa, não
dormia de noite. Às vezes, ia para a academia e chegava
a andar por três horas na esteira. Recebeu, então,
um ultimato da família: se não aceitasse o tratamento
médico e a terapia, seria internado na marra.
Foi quando passou a ingerir os antidepressivos com LSD, ecstasy
e bebida alcoólica. "Na minha memória,
parecia que meu corpo não sentia dor." Com esse
estado de espírito, naquela manhã de segunda-feira,
olhou-se ao espelho à procura de sua própria
imagem.
Depois de alguns meses, a combinação dos remédios
com a terapia ajudou-o a evitar as drogas. Assim como o ajudou
ter reatado com a namorada. Ao escrever suas memórias,
cujo título provisório é "Voltei",
imagina que saberá entender melhor tudo o que aconteceu
-e, mais importante, nessa reconstrução, quem
sabe venha a se sentir útil, transformando sua trajetória
em aprendizado para mais gente.
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Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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