Ao plantar um pé de jabuticaba
numa praça pública, na manhã de domingo
passado, o psiquiatra e psicanalista Nelson Luis Carrozzo
voltou quase 50 anos no tempo. Lembrou-se da primeira vez
que, em férias no sítio de seu avô, viu
aquelas árvores cobertas de frutas negras com polpas
brancas. "Vivia montado nos galhos, devorando o que podia."
O avô ensinou-lhe que os galhos, apesar de finos, eram
fortes.
Por muitos anos, as jabuticabas fizeram parte da vida daquele
menino criado no interior de São Paulo, para quem as
ruas se misturavam, quase como se fossem um espaço
único, à sua casa. Numa das cidades em que viveu
-o pai, engenheiro eletrônico, trabalhava para o Exército,
o que o obrigava a fazer constantes mudanças de endereço-,
Nelson teve a sorte de morar numa residência que tinha
uma floresta de jabuticabeiras no quintal.
Os estudos trouxeram-lhe para São Paulo. Sentia-se
sufocado. "Era como se me faltasse ar." Não
se habituava à correria, ao trânsito, à
poluição e, muito menos, à falta de horizonte.
Morava num pequeno apartamento no bairro da Aclimação.
Sua única paisagem, observada de uma exígua
janela, consistia em uma imensa garagem de ônibus abandonada.
"O apartamento mínimo e a vista da garagem só
aumentavam meu incômodo."
Anos depois, a garagem virou uma praça, mas, mesmo
assim, a desolação não desapareceu: estava
sempre suja, com lixo acumulado aos montes, o mato alto e
o lago -ali existe uma nascente de rio- transformado em banheiro.
Mendigos fizeram dali sua habitação. Como dirigia,
no bairro, uma entidade de saúde mental (chamada A
Casa) voltada para a oferta de serviços comunitários,
Nelson vivia imaginando um meio de envolver os vizinhos na
recuperação daquela praça. "Não
sabia por onde começar."
Ao lado de assistentes sociais e terapeutas com quem trabalhava,
ele foi batendo de porta em porta na busca de aliados. Viu
que não era o único a incomodar-se com aquele
ambiente deteriorado.
Até que, neste ano, conseguiu, com a ajuda da prefeitura,
reparações na praça e doações
de árvores, algumas das quais frutíferas -"assim
vamos atrair os pássaros"-, para serem plantadas
em mutirão. No domingo passado, dia da festa de revitalização
da praça, Nelson já não tinha dúvida
sobre qual árvore plantaria. Desde aquela manhã,
começou a frutificar ali, com suas memórias,
uma jabuticabeira.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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