"O Mistério
das Bolas de Gude" trata de dois temas: pertencimento e visibilidade.
Os termos inusuais podem parecer papo de ongueiro -e até são-,
mas escondem uma história de amor que vale a pena ser contada.
O amor de um jornalista por duas cidades.
O jornalista é Gilberto Dimenstein, desta Folha, autor do
livro e criador da ONG Escola Aprendiz, localizada na paulistana
Vila Madalena (zona oeste da cidade). A primeira cidade, o
paradigma, é Nova York, onde ele viveu por algum tempo na
década de 90, quando os nova-iorquinos tomaram de volta suas
ruas, impulsionados pela política de tolerância zero da polícia
e pelo crescimento econômico dos Estados Unidos.
A combinação dos três fatores (cidadania, segurança e dinheiro)
deu no que deu: uma das maiores cidades do mundo com índices
de criminalidade de município interiorano dos anos 60. A segunda
cidade é São Paulo, onde Dimenstein vive hoje. A tese que
ele vende, polêmica, é a de que a metrópole brasileira trilha
o mesmo caminho de sua parente americana. O leitor tem todo
o direito de discordar de tal premissa, mas este repórter
avisa: vale a pena sentar e ler as histórias que o jornalista
conta para ampará-la.
Pois, como mostra em suas duas colunas neste caderno Cotidiano
e vem mostrando ao longo de três décadas de carreira, mormente
nos últimos 16 anos, Gilberto Dimenstein sabe olhar onde estão
as histórias, voltar para o computador e contá-las.
São casos pungentes de anônimos, de celebridades que superaram
obstáculos pessoais terríveis ou de celebridades que descobrem
um sentido na vida quando passam a ajudar anônimos. Como pano
de fundo -e como personagem também-, a cidade. Mesmo aqui,
o autor faz a opção preferencial pela urbanidade, não pelo
urbanismo oco e descritivo.
Há o pianista que sobreviveu à perda dos movimentos nas duas
mãos, a mãe que vê morrer a filha recém-nascida e passa a
ajudar outras mães como ela espalhadas pelas UTIs, o emigrante
que descobre a arte nas pedras da penitenciária recém-demolida.
E assim, cercado de boas histórias e auxiliado por estatísticas,
Dimenstein defende nas 190 páginas que, ao se tornar visível,
o sujeito vira cidadão. Defende também, como fazia o escritor
cubano naturalizado italiano Ítalo Calvino (1923-1985), que
o mesmo acontecerá se esse sujeito perceber que pertence a
algo maior que ele, que também lhe pertence. A cidade.
Pertencimento lembra uma das prováveis origens da palavra
religião (questionada por alguns etimologistas): "religar".
Religar cidadão e cidade, sujeito e sociedade, eis o credo
de Gilberto Dimenstein.
Livro: O Mistério das Bolas de Gude -Histórias de Humanos
Quase Invisíveis
Autor: Gilberto Dimenstein
Editora: Papirus (190 págs.)
Quanto: R$ 28
SÉRGIO DÁVILA
da Folha de S.Paulo
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