|
Ele já
ajudou a construir centenas de casas, mas talvez nenhuma como
a dele próprio, com 40 mil livros e um nome, Biblioteca
Comunitária Tobias Barreto, localizada no bairro de
Vila da Penha, no Rio de Janeiro. O pedreiro sergipano Evando
dos Santos, 40, declamou poesias enquanto era entrevistado
e, além do autor preferido —o que deu nome à
casa-biblioteca—, falou de Pablo Neruda, Che Guevara,
Machado de Assis, Voltaire, Ramsés, Dom Pedro, Gabriela
Mistral e Aluízio Azevedo. "Livro para mim é
vida."
Evando estudou na roça, na cidade de Aquidabã
(SE), até o que ele acredita ser o segundo ano do ensino
fundamental. "Quando eu ouvia falarem de língua
portuguesa, pensava que portuguesa era uma pessoa, acredita?"
Como não havia livros em sua casa e ele deixou cedo
a escola, a possibilidade de que surgisse alguma intimidade
com a leitura era remota. "Meu único contato era
com a literatura de cordel, que eu ouvia nas ruas", conta.
Apesar das condições contrárias e da
pouca educação formal, a erudição
do pedreiro e sua história são uma rara exceção
no universo da leitura no Brasil —Evando lê cerca
de dez livros por mês, o que o coloca muito acima da
média de leitura dos brasileiros, que é de 1,8
livro por pessoa, por ano, de acordo com a CBL (Câmara
Brasileira do Livro). Além disso, a maioria das pessoas
que, como ele, teve pouco ou quase nenhum acesso à
escola não consegue compreender o que lê. Apenas
25% dos brasileiros com idade entre 15 e 64 anos são
capazes de ler textos longos, localizar mais de uma informação
e estabelecer relações entre diferentes textos,
de acordo com o Inaf (Indicador Nacional de Analfabetismo
Funcional) de 2003, índice obtido a partir de pesquisa
da ONG Ação Educativa, em parceria com o Instituto
Paulo Monte Negro, do Ibope.
Por não ter freqüentado a escola o quanto deveria
e por não ter tido o estímulo para a leitura
dentro de casa, Evando é um anti-exemplo. Segundo os
especialistas ouvidos pela reportagem, o gosto e o interesse
pelos livros são adquiridos socialmente, apesar de
a leitura ser um ato individual.
Para Vera Masagão, da ONG Ação Educativa,
o principal ambiente em que as pessoas podem ser acostumadas
ao universo da leitura é a escola, "com todas
as deficiências que ela tem". Ao lado dela, está
a família. "Quem nasceu em uma família
de leitores, independentemente do poder aquisitivo dessa família,
tem muita chance de se tornar um grande apreciador dos livros",
acredita o presidente do Instituto Brasil Leitor, William
Nacked. Um dado do Inaf parece sustentar essa opinião:
a mãe é indicada por 41% dos entrevistados como
uma das duas pessoas que mais influenciam o gosto pela leitura
—professores são citados por 36%, e o pai, por
24%.
O caminho, assim, é de mão dupla: se o nível
de letramento é baixo, é preciso realizar mudanças
no sistema de ensino. Se o cidadão não consegue
compreender o que lê e se não há o que
ler nas casas das pessoas, o contato cada vez mais próximo
e freqüente com o livro, ainda que o mais simples possível,
pode levá-lo a querer se aprofundar no universo da
leitura.
Mas nem todos entre os que conseguem compreender, por exemplo,
uma reportagem como esta chegam a ser um leitor voraz de livros.
De acordo com a CBL, há no Brasil apenas 26 milhões
de leitores ativos, ou seja, lêem pelo menos quatro
livros por ano. Além disso, somente um terço
da população adulta alfabetizada aprecia a leitura
de livros e, dos 2,4 livros per capita produzidos por ano
no Brasil, apenas 0,7 são não-didáticos,
segundo o MEC.
Assim, há dois caminhos a serem seguidos: um que leve
a literatura aos que não lêem e possuem baixo
nível de letramento e outro que direcione os leitores
ativos a lerem ainda mais livros.
"Para aquele que não lê, não adianta
querer unir forma e conteúdo. Ele nunca vai conseguir
se interessar. Se você der algo que ele quer muito,
vai funcionar. Ele tem de conviver com o objeto para saber
o que pode encontrar nele", acredita Marino Lobello,
vice-presidente da CBL. Para Evando dos Santos, o pedreiro
dos 40 mil livros, o importante é o leitor "se
achar". "Você não pode dar feijoada
a quem só consegue comer caldo verde", brinca.
Para despertar o interesse pela leitura em quem não
tem formação, valem esforços como o da
professora Maria do Socorro D'Ávila Oliveira, que coordena
o Mala de Leitura, projeto do Centro dos Trabalhadores da
Amazônia. Ela leva livros para comunidades do interior
da floresta do Acre, como uma biblioteca ambulante. São
duas horas de carro para ir de Rio Branco a Xapuri. De lá,
Socorro pega um barco e, depois de dois dias, chega à
floresta, onde caminha por mais oito horas até a comunidade
de São José, que tem cerca de 40 habitantes.
Na bagagem, duas malas de livros.
Segundo a professora, ainda que os livros sejam simples —às
vezes de pequenas frases—, são a "isca"
para despertar o interesse. Prova disso é que, em São
José, os moradores lêem até 20 livros
em dois meses —tempo médio em que a mala fica
na escola da região, até que uma nova troca
das obras seja feita. Nas comunidades, pais, filhos, tios,
primos, todos lêem juntos.
O resultado do esforço de Socorro faz com que ela
defenda com propriedade a tese de que, tendo livros à
disposição, as pessoas lêem. "Podem
começar aos poucos, mas logo descobrem o quanto esse
hábito pode ser agradável." William Nacked,
do IBL, concorda: aqueles que têm pouca instrução
precisam descobrir o prazer da leitura sem compromisso, para
assim adquirir o "vício".
Mas os integrantes do projeto Vamos Ler um Livro, do Núcleo
Cultural Força Ativa —que nasceu no movimento
hip hop e hoje realiza diversos projetos sociais e culturais
em Cidade Tiradentes (zona leste de São Paulo), lutando
principalmente contra o racismo— discordam dessa falta
de compromisso com o que se lê. Para eles, mesmo quem
possui pouca cultura literária deve aprender a ser
seletivo. "Quando falamos de leitura, nos referimos à
busca de conhecimento, o que não se faz lendo 'qualquer
coisa'. Existem leituras e leituras, e nós incentivamos
a leitura de autores preocupados em entender o Brasil e a
sociedade de um modo geral", diz o porta-voz do grupo,
Washington Lopes Góes, 28.
O grupo de rap Juventude Armada, cujos integrantes fazem
parte do Força Ativa, compôs a canção
"Vamos Ler um Livro", que dá uma idéia
do trabalho realizado pelo núcleo. Sem meias-palavras,
a canção dá o recado: "Chega de
ler besteira/ Chega de babaquice/ Procure se informar/ Não
seja o mestre da burrice/ São tantos que falam merda/
E isso enjoa, é um tormento/ Procure ler um livro/
Pois é a máquina do tempo".
Se as palavras cantadas no rap são eficazes para
instigar as pessoas à leitura, mais uma vez a história
de Evando dos Santos confirma que ouvir pode ser um bom começo.
Para ele, "é preciso dar livros às pessoas
e ensiná-las a gostar de ouvir histórias. Sem
o contato humano, é mais difícil surgir o interesse
pela leitura".
Depois da literatura de cordel que ouvia em Aquidaban, foi
o pastor da igreja que, indicando-lhe a leitura dos salmos,
"que são poesia doce como o mel", fez com
que Evando passasse da curiosidade à prática.
Mas o impulso que o levou à paixão pela literatura
foi dado por um colega de trabalho. "Na hora do almoço,
todo dia, ele ficava quieto em um canto, sério, lendo,
e não gostava que ninguém chegasse perto. De
repente, levantava e dizia: 'Hoje declamarei Shakespeare,
falarei de Leonardo da Vinci'. E eu lá sabia quem era
esse Shakespeare? E ele dizia: 'Prestem atenção,
ouçam. Só se aprende ouvindo'. Com isso, esse
homem me arrebatou o espírito!", conta Evando,
que então começou a comprar livros.
Mas não é preciso esperar o rompante poético
de um colega de trabalho para ouvir a declamação
de poesias ou a leitura de um conto. É possível
participar de saraus e recitais de histórias em locais
como a praça Benedito Calixto, em São Paulo
—onde todos os sábados acontece o projeto Autor
na Praça—, e bibliotecas onde contadores de histórias,
atores e jogadores de RPG procuram estreitar o contado das
pessoas com os livros.
"Não basta a estante com livros, isso não
garante a formação de leitores. Criando estratégias
de apropriação do leitor com o espaço
da leitura conseguimos formar o hábito", acredita
Durvalina Soares Silva, coordenadora do setor de Bibliotecas
Públicas e do de Bibliotecas Infanto-Juvenis da Prefeitura
de São Paulo. Ela comenta que, nos saraus, a produção
local vem à tona, "e as pessoas não saem
mais da biblioteca, assumem um vínculo que também
é afetivo".
E como fazer o leitor ativo, que lê quatro livros por
ano, passar a ler oito? Para Lobello, esse público
carece de polimento. O vice-presidente da CBL acredita que
essas pessoas difundem o hábito da leitura e são
permeáveis a campanhas promocionais —como coleções
a preços acessíveis e livros de bolso.
A recém-criada biblioteca Embarque na Leitura, instalada
pelo IBL na estação Paraíso do Metrô,
em São Paulo, quer fazer isso.
Os passageiros que circulam diariamente por ali —são
cerca de 250 mil— podem retirar um livro de graça.
A média de cadastros tem sido de 300 por dia.
Mais convidativa aos leitores também espera ficar
a Biblioteca Mario de Andrade, em São Paulo, a segunda
maior do país, que está passando por uma reforma
para ampliar as possibilidades de atendimento ao público.
Por enquanto, problemas estruturais começam a ser resolvidos,
alguns graves, como o mofo na sala de mapas. Para o ano que
vem, pretende-se ampliar o salão de leitura da biblioteca
e construir um novo auditório, entre outras reformas.
"A pessoa quer ser bem atendida em uma biblioteca, ter
livros novos à disposição, um bom lugar
para ler. Nenhum desses aspectos funciona no Brasil atualmente",
acredita José Castilho Marques Neto, diretor da Mario.
Dados do Inaf mostram que mais de um terço da população
(34%) afirma nunca ter ido a uma biblioteca. Nas classes D
e E, esse percentual é de 49%.
Na opinião de Pedro Corrêa do Lago, presidente
da Fundação Biblioteca Nacional, do Rio de Janeiro,
um fator é fundamental para despertar o apetite pela
leitura: o acesso aos livros e a outras formas de texto impresso.
"É um caso típico em que a oferta pode
criar a demanda", diz Lago, que está à
frente do projeto Fome de Livro, do governo federal, que pretende
zerar o número de municípios brasileiros sem
biblioteca.
O diretor da escola de Estudos Tecnológicos da Universidade
de Michigan, nos EUA, Morell Boone, fez um trabalho sobre
as bibliotecas das universidades. Ele acredita que a biblioteca
do futuro, que já é realidade em diversos países,
como disse ao Sinapse, "deve equilibrar dois mundos:
o da livraria como depositório de livros e como um
lugar que ofereça uma gama de opções
para o consumidor".
Em Ribeirão Preto (314 km ao norte de São Paulo),
das 72 bibliotecas comunitárias instaladas pela prefeitura
desde 2001, aquelas em que a comunidade promove ações
culturais são as que mais fortemente podem promover
o hábito da leitura, acredita Christina Tavares, presidente
do Instituto do Livro, organismo vinculado à Secretaria
Municipal de Cultura da cidade e responsável pela coordenação
do programa.
Instaladas em escolas, ONGs, igrejas, bases comunitárias
e associações de moradores, cada nova biblioteca
possui um acervo de cerca de 850 títulos, que totalizam
aproximadamente 2.500 exemplares. O dado mais animador, para
Tavares, foi o obtido há duas semanas, a partir de
uma pesquisa realizada pelo Instituto do Livro: mostrou que
a média de leitura da população de Ribeirão
foi de sete livros em 2003. "A parceria com essas entidades
garante o caráter público das bibliotecas, já
que todas, mesmo as que ficam em escolas, são abertas
à população. E em boa parte dos casos
a solicitação vem da própria comunidade,
o que já indica que o espaço não ficará
dado às moscas", diz.
Outra ação recente aconteceu em julho, no Rally
dos Sertões. Participantes da competição
distribuíram pelo percurso 5.000 livros —além
de 500 obras em braile— da escritora Patrícia
Secco, 41. A autora já escreveu mais de 90 livros e
distribuiu, em sete anos de trabalho, cerca de 16 milhões
de exemplares das obras.
O livro, como objeto vivo dentro da sociedade, aproxima as
pessoas. "Pessoas que lêem, quando próximas
de outras que não lêem, geram interesse pela
leitura", acredita Vera Masagão. Nesse sentido,
mais uma vez a história do pedreiro funciona como coluna
vertebral desse corpo chamado leitura. Todo final de ano —e
o evento já está na sua quinta edição—,
ele realiza a "feijoada literária", para
cerca de 160 pessoas. "Todo mundo se alimenta muito.
De comida e de poesia", brinca.
Evando, ainda que diga que só ele entende o que escreve,
já produziu sua autobiografia —"As Aventuras
do Pedreiro Maluquinho por Livro"— e reuniu pessoas
da região onde mora para organizar o livro "A
História da Penha Escrita pelos Moradores", que
tem 120 páginas e 44 fotos. "Também estamos
escrevendo o 'Dicionário das Pessoas Importantes Desconhecidas',
em que vamos contar a história do coveiro, do pedreiro,
do porteiro, da faxineira... Já temos 240 histórias,
e queremos chegar a 2.000", diz o pedreiro, que conta
com o apoio de estudantes de escolas da região.
O administrador de empresas Marcelo Sanuto, 50, foi contaminado
por Evando: os primeiros 500 livros com os quais abriu, em
sua casa, o que atualmente é a Biblioteca Comunitária
Paulo Freire, que tem acervo de 12 mil exemplares, foram doados
pelo pedreiro. "Sempre quis montar uma biblioteca comunitária.
Soube do trabalho do Evando, e foi aí que tudo começou",
conta Sanuto, que organizou no início do projeto, em
1999, no bairro de Caxias, no Rio, um mutirão literário
que arrecadou 1.050 livros.
"Muitas pessoas tinham os livros guardados como objetos
que ocupavam espaço. Queremos difundir a idéia
de que, se eu dôo livros que tenho guardados, pessoas
que não têm acesso à leitura terão
a oportunidade de lê-los", diz Sanuto. Ele também
seguiu o exemplo de Evando —que ajudou a montar outras
18 bibliotecas na Baixada Fluminense, também nascidas
nas casas das pessoas— e já doou obras para abrir
três bibliotecas em bairros vizinhos.
Em 1999, moradores de grandes residências de Moema,
bairro de classe média alta de São Paulo, estavam
migrarando para edifícios, justamente quando o geógrafo
Aziz Ab'Saber, do Instituto de Estudos Avançados da
USP, decidiu montar bibliotecas comunitárias. Com o
apoio de "agitadores culturais", montou postos de
coleta em farmácias, bares e até em uma academia
de ginástica. "As pessoas não tiveram dúvidas:
doaram os livros. Ele ajudou a estruturar 21 bibliotecas comunitárias,
que têm ao todo cerca de 40 mil obras, instaladas em
escolas de samba, cursos pré-vestibular populares e
associações de moradores, entre outros locais
da capital paulista.
Essas iniciativas, somadas às ações
de organizações, governos e empresas, podem
de fato fazer com que o livro chegue até as pessoas,
e não há outra maneira de criar condições
para formar futuros leitores. Com os livros à mão
e com atividades que desenvolvam nas pessoas o interesse por
manuseá-los, folheá-los, absorvê-los,
talvez muitas casas passem a ter, além dos tijolos
manuseados por Evando dos Santos, um décimo dos 40
mil livros que, hoje, são como novas paredes na casa
do pedreiro.
Ele não pára aí —outras paredes
estão nos seus planos. Quer montar uma faculdade comunitária
que conta até com projeto arquitetônico de Oscar
Niemeyer. Mas seu principal sonho é ver os livros tão
difundidos quanto um prato de arroz e feijão. Em "A
Vida de Galileu", peça do escritor alemão
Bertolt Brecht, Galileu Galilei diz ao seu assistente Andrea:
"Ponha o leite na mesa, mas não feche os livros".
A cena se assemelha ao desejo de Evando e de outras pessoas,
que aguardam o dia em que a literatura faça de fato
parte da rotina —e da cesta básica— das
pessoas.
ANTONIO ARRUDA
free-lance para a Folha de S.Paulo
|