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A
caminhada pela madrugada durante a Virada Cultural me produziu
duas sensações contraditórias e de igual
intensidade, ambas de revezando e, às vezes, se mesclando
numa só imagem. Sentia-me estrangeiro como se não
estivesse em São Paulo e, ao mesmo tempo, experimentava
a emoção do contato com a essência tão
familiar de uma cidade.
Definitivamente não faz parte de nossa paisagem urbana
tanta gente diferente ocupando as ruas tão alegremente,
sem medo. Possivelmente todas as tribos estavam ali representadas
e convivendo com se o outro não fosse uma ameaça.
É como se, naquele momento, os muros e grades se desfizessem.
Mas faz parte da alma paulistana tanta gente diferente, já
que uma linha definidora da cidade é adiversidade,
o aglomerado de tribos. Na falta da beleza do cenário,
a multiplicidade das tribos é a nossa melhor estética.
Por isso aquela madrugada apinhada de gente, na qual se podia
ouvir de um Nelson Ned, nolargo do Arouche, e ver os movimentos
de uma Ana Botafogo, no Vale do Anhangabaú, misturou
na mesma medida realidade e irrealidade.
As imagens só foram se assentando quando me sentei
na praça Dom José Gaspar, onde ouvia o piano
do cubano Ricardo Castellanos, tocando suavemente a composição
que fez para o avô que o criou e estava com câncer.
Toda aquela fantasia de 24 horas tinha uma dose muito forte
de realidade porque integra a lógica de uma população
que não suporta mais a clausura e pede mais espaço,
mais liberdade – a elementar liberdade de andar nas
ruas sem medo, de não ficar inseguro quando alguém
passa por perto.
Como já vimos em outras cidades – Nova York,
Barcelona ou Bogotá – a recuperação
do centro é apenas a conseqüência geográfica,
visível, da busca de uma centralidade maior. Quem caminha
pelo centro sempre consegue ver esse movimento em câmara
lenta, com a volta de estudantes e a criação
de espaços culturais. São Paulo ainda está
muito longe de ser aquela madrugada de domingo. Mas é
parte de seu imaginário chegar lá. Aquela madrugada
é uma marca na construção de um imaginário
coletivo sobre o que deve ser uma cidade - assim como as multidões
que ocuparam o Vale do Anhangabaú, no começo
da década de 1980, com a campanha das diretas, ajudaram
a construir a imagem de uma nação democrática.
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