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Depois
de passar dez anos morando nas esquinas de São Paulo,
Esmeralda Ortiz, ex-menina de rua, prova que é possível
achar um sentido para uma vida errante
Nem todos os becos são
sem saída. Esmeralda Ortiz perambulou muito, mas achou
o caminho que a levou para longe das calçadas depois
de 10 anos sem teto, endereço ou CEP. A moça
foi, durante uma década de seus 28 anos, uma menina
de rua. Com direito ao pacote completo. Entrou e saiu umas
cinqüenta vezes da Febem, roubou, cheirou cola, fumou
crack, sofreu abuso sexual. A rotina dos fantasmas da cidade
que passam propositadamente despercebidos para os transeuntes.
Toda essa história Esmeralda contou no seu primeiro
livro, Porque não dancei, que narra uma impressionante
trajetória de recuperação de uma vida
quase perdida. De fato, quem vê e conversa com essa
mulher feita hoje, mal pode acreditar que é a mesma
pessoa de quem a vida abusou por tanto tempo. Difícil
crer que era essa a mesma adolescente que, louca de crack,
brincava de pega-pega com a polícia; ou a menina que
apanhava diariamente da mãe antes de fugir para a rua;
ou a que foi estuprada na linha do trem.
Esmeralda começou a reescrever sua história
iluminada pelo fio de luz que entrava na sua cela na Febem
com um cotoco de lápis dado pelo diretor e mantido
sob segredo constante, para evitar tomar pauladas dos funcionários.
Quando deixou a rua e o crack, a menina encontrou em um projeto
social, a direção para começar a se tornar
a mulher que é hoje. Com o apoio do projeto, escreveu
e publicou seu catártico primeiro livro. Depois veio
O diário da rua, sua segunda aventura como escritora.
Nesse meio tempo, Esmeralda ganhou educação
- enfrentando suas próprias deficiências para
terminar a faculdade de jornalismo - e um rebento - Kadu,
seu filho de 3 anos, que cria sozinha em sua casa em Pirituba,
zona oeste de São Paulo. É esse desenrolar de
seu roteiro que ela contou para a CULT nesta entrevista, provando
que pode haver vida depois da rua, que é possível
carregar o peso que ela suportou na sua errância sem
partir as costelas e começar a escrever um final diferente
para uma história destinada a ser estatística.
CULT: Como foi seu percurso depois que fez seu primeiro
livro?
Esmeralda Ortiz: Quando saí da rua eu tinha uma meta:
estudar. E quando escrevi meu livro a meta cresceu mais ainda.
Teve até uma menina que saiu da rua, e escreveu um
livro também, que se suicidou depois que terminou.
Eu entendo. Fiquei mal, meu. Queria me enfiar em qualquer
buraco. Mas não queria ser apenas uma escritora que
saiu da rua e conseguiu fazer um livro, eu queria quebrar
esse padrão. Fui estudar, investir na minha educação.
Entrei na faculdade Anhembi-Morumbi. O reitor me ligou oferecendo
uma bolsa. Ligou também o dono da livraria Cortez me
oferecendo uns livros. Pessoas que nunca tinha visto, me ajudando,
isso faz valer a pena. A faculdade foi muito legal, mas mesmo
assim, sofri um pouco de preconceito. Pelo meu jeito... Primeiro
é cultural, por ser ex-menina de rua trago essa cultura
de lá. Não vou chegar na faculdade como os caras,
com tudo certinho. Então, fazia a maioria dos trabalhos
sozinha. A única pessoa que fazia trabalho comigo era
o Bene, meu amigo. Tinha uma professora que começou
a me perseguir muito. Até pensei em processar ela por
preconceito.
CULT: Por que ela perseguia você?
E.O.: Sei lá, meu. Na verdade, não sei como
entrei na faculdade, porque minha educação foi
muito complicada. A professora perguntava se alguém
tinha dúvida e eu sempre levantava a mão. Não
lembro direito, mas ela falava que não ia responder.
Eu ia falar, ela não deixava. Ia fazer pergunta, ela
não deixava. Até repeti a matéria dela.
Quando fiz de novo, ela tinha lido meu livro e chorou bastante,
veio me pedir desculpas. Deixei de lado, tá ligado?
Os outros professores foram muito compreensivos. Entendiam
minha deficiência... Não é nem deficiência.
Tenho meu dom, mas tem coisas que não tenho QI, entendeu?
Quando engravidei, freqüentei a faculdade o tempo todo
durante a gestação. Depois que meu filho nasceu,
foi comigo todos os dias para as aulas até um ano e
seis meses. Não tinha com quem deixá-lo. Os
professores me deixaram levá-lo numa boa, então
teve o lado bom também. O lance é que faculdade,
no Brasil, não desmerecendo, mas a gente sai sem saber
nada. Estou aprendendo agora, na prática. Lá
ficamos só na teoria. Mas o curso me deu um caminho,
então foi muito bom. Agora quero fazer antropologia.
CULT: Quando você estava na rua tinha medo de
morrer?
E.O.: Muitas vezes busquei a morte. Vivia com ela, sempre
acreditei que seria a melhor saída.
CULT: E esse pensamento voltou alguma vez?
E.O.: Não é que volta, você sai traumatizada,
massacrada. Não sei como consegui manter meus sonhos
vivendo na rua. Qualquer um que vai morar na rua a primeira
coisa que faz é entrar nas drogas. Porque ela tira
a fome, tira o sono, tira o frio, tira a ansiedade, dá
uma sensação de proteção, faz
ser o que você acredita que é. Mas depois vem
o vazio e fica um buraco da porra. Então, me admiro
por ter tido sonhos, perspectivas, enquanto o mundo inteiro
me provava o contrário. Se hoje estou aqui é
por causa dos meus sonhos. Quando nasci, minha mãe
não tinha uma casa para morar. Sempre me chamava de
amaldiçoada e isso e aquilo outro. Meu filho, não.
Ele tem uma casa para morar, uma mãe que diz que o
ama, um lugar para comer. Tudo porque acreditei que, se fosse
para gerar um fruto, iria fazer diferente de como fui criada.
CULT: Você está descobrindo o que é
ter família agora?
E.O.: Minha família sou eu e meu filho. Meu irmão
está na cadeia. Tenho uma irmã que é
casada, mas mora numa situação precária
no barraco que minha mãe deixou. Minha família
se resumiu a isso porque metade morreu por causa de alcoolismo,
drogas. Está sendo muito boa a relação
com meu filho, saber que posso dar amor mesmo sem ter recebido.
Saber que tenho minhas angústias e tenho que resolvê-las
sozinha, não passar isso para o meu filho, porque ele
nem sabe o que passei. Quando o pai dele soube que eu estava
grávida, saiu fora, depois de 3 anos juntos. Me disse:
"Ou você tira ou não fico". Então,
tchau, meu filho.
CULT: Quem era o cara?
E.O.: Conheci na faculdade, ele trabalhava num bar chamado
Rabo de Peixe, na Vila Olímpia. A gente manteve um
relacionamento. Tentei ajudá-lo, porque estava desempregado
e tal. Através de uns contatos meus consegui arrumar
faculdade pra ele.
CULT: Foi difícil seu começo como mãe?
E.O.: Foi um período conturbado, fui muito pressionada
quando ganhei meu filho. Teve uma amiga minha que me ajudou,
mas fui sozinha para o hospital. Saí, fiquei sozinha
em casa, com cesariana e tudo. Mas só fiz porque decidi
ter. Daí tranquei minha casa, fiquei quatro meses na
casa de uma amiga minha. Levava meu filho para o trabalho,
porque não tinha arrumado creche para ele. Trabalhava
à tarde, fazia DP de manhã lá na Bresser
e estudava de noite lá na Vila Olímpia. Sempre
com meu filho.
CULT: Por que você escolheu jornalismo?
E.O.: Porque é o que gosto de fazer, comunicar. É
uma coisa bem dinâmica, não sou uma pessoa parada.
Gosto de dar um outro enfoque, falar das pessoas em si. Não
só da rua. Mostrar o outro lado. Um jornalista, quando
entra na periferia, vai com tudo, mas, quando vai na classe
média, aperta a campainha e pede licença. Morreu
uma mulher lá nos Jardins, vi hoje no jornal da Record.
Fiquei contando, foram quase sete minutos com comentarista
e o apresentador falando da morte da mulher. Porque ela foi
assaltada e tomou um tiro. O filho do padeiro morre e ninguém
está nem aí, às vezes não vai
nem para estatística, mas como indigente. Todos têm
que ter tratamento igual. Às vezes a mídia gasta
o programa todinho falando só desgraça, mas
será que nesse dia não aconteceu uma coisa boa
ou será que foi só morte?
CULT: De onde veio esse seu interesse por pessoas?
E.O.: Minha avó era muito comunicativa. Convivi pouco
tempo, mas até hoje tenho uma impressão muito
legal dela, que morreu por conta de álcool, bebida...
Eu me espelhei nela. Sou uma pessoa muito dada. Se estou na
rua converso com todo mundo. Conheço muita gente dessa
maneira. Tenho tantos amigos que não passo necessidade.
Às vezes não tenho dinheiro para o bumba e o
motorista, que é meu amigo, deixa eu passar, entende?
Trato todo mundo igual, não tem essa. Geralmente as
pessoas são muito fechadas, reprimidas. E quando vêem
alguém mais aberto...
CULT: Depois que sabem da sua história elas
mudam o tratamento?
E.O.: Começam a admirar, mas deixo claro, onde vou
dar palestra, que minha história é o que vivo
hoje. Nesse momento estamos eu e você trocando idéia,
mas tem um monte de criança sofrendo abuso sexual agora,
ou abandono... Fora os problemas que já são
freqüentes: falta de educação, estrutura
familiar, saneamento básico, moradia. Meu livro, na
verdade, conta a história de várias Esmeraldas
espalhadas por aí que não conseguem encontrar
saída. Quando o pessoal vai à rua é para
mostrar estatística, quem roubou a bolsa da madame,
quem fuma pedra... E não é nada disso, o problema
é bem maior.
Filipe Luna
Revista Cult
Esmeralda
Ortiz fala da importância da escola na sua vida
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