O fotógrafo João Kulcsar realizou uma experiência em São
Paulo para saber até onde crianças de rua conseguiriam,
munidas de uma máquina fotográfica e estimuladas
a registrar a cidade, desenvolver a auto-estima e se integrar
a processos de aprendizagem. De posse dos dados de sua pesquisa,
ele foi convidado a participar do Projeto Zero, em Harvard,
nos Estados Unidos, onde se investigam meios de estimular
as diferentes formas de inteligência de um ser humano.
Durante um ano, João Kulcsar, na condição
de acadêmico visitante, viu os mais sofisticados experimentos
espalhados pelo mundo -de meninas da Tailândia, passando
por mulheres presas nos Estados Unidos, a adolescentes superdotados
metidos em invenções. "A gente chega a
ficar sem ar de tanta excitação", conta.
O condutor do Projeto Zero é o neurologista Howard
Garder, autor de várias descobertas sobre inteligências
múltiplas. Uma delas, por exemplo, é a existência
de uma inteligência espacial, que está associada
aos movimentos do corpo -foi essa inteligência que fez
Ronaldinho ser, apesar de um péssimo aluno, um grande
jogador. Tais idéias influenciam educadores em escala
mundial.
Programas desse tipo são apenas um fragmento em Harvard,
que, desculpem a metáfora futebolística, está
para a vida acadêmica como o Real Madrid está
para o futebol. Seus idealizadores teriam, portanto, todas
as razões para andar de salto alto, mas o que presenciamos
na semana passada, no Brasil, foi um exemplo de humildade
que nos faz pensar sobre novas formas de encarar o conhecimento.
Esteve no país, na semana passada, Lawrence Summers,
para quem Harvard, universidade da qual é reitor, tem
muito a aprender e a mudar para se adaptar às novas
demandas do conhecimento. Os currículos devem ser atualizados,
a formação dos professores deve ser aprimorada,
os níveis de cobrança aos alunos devem ser elevados.
Para isso, entre outras coisas, busca atrair o que pode de
talentos espalhados pelos Estados Unidos e pelo mundo e, assim,
manter um clima de criatividade competitiva. Não é
falsa modéstia, mas apenas o pragmatismo de quem acompanha,
em detalhes, a velocidade da produção e da disseminação
dos saberes e fazeres, alterando os modos de aprender a ensinar.
Um dos maiores problemas brasileiros é ainda essa
falta de compenetração coletiva de que é
preciso investir na qualidade de ensino. Apesar de todos os
avanços -que não foram poucos-, os governantes,
as famílias e a mídia aparentemente não
se perturbam, de fato, com o disseminado analfabetismo funcional
na língua e com a incapacidade da maioria dos brasileiros
de lidar com contas básicas (juro composto, por exemplo).
Há explosões de indignação aqui
e ali, quando são divulgados os resultados de testes,
mas, logo em seguida, tudo volta ao normal.
A humildade pragmática do reitor traz uma lição:
a qualidade do ensino depende, em parte, de a universidade
se inserir numa comunidade de aprendizagem conectada com o
que existir de inovação no planeta. Faz sentido,
então, um experimento com crianças de rua paulistanas
e suas fotos estar por lá, ajudando a entender como
funcionam as inteligências.
Apenas a escola, por melhor que seja, não consegue
mais atender às demandas: tem de fazer parte dessa
comunidade, orientando os alunos, e ajudá-los a ter
autonomia de pesquisa. Um dos melhores instrumentos para essa
mudança de patamar foi apresentado no fórum
mundial sobre educação, iniciado em São
Paulo na última quinta-feira, baseado justamente nesse
princípio da comunidade de aprendizagem: a cidade educadora.
Erguer uma cidade educadora implica, em poucas palavras,
derrubar os muros das escolas e fazer da cidade um aglomerado
de salas de aula, convidando o aluno a trilhar pelas mais
diversas experiências. Teatros, cinemas, praças,
parques de diversões, exposições, bibliotecas,
concertos -empresas passam a compor roteiro permanente de
aprendizado.
Esse roteiro é útil para todos, mas especialmente
valioso para estudantes de escolas públicas, muitos
dos quais vindos de famílias com baixa escolaridade,
que tiveram pouco acesso à cultura. Sabemos que alunos
mais ricos demonstram melhor desempenho não apenas
porque estão nas melhores escolas mas porque trazem
uma bagagem cultural de casa - a começar do manejo
da língua portuguesa.
Posso assegurar, depois de ter visto casos bem-sucedidos
em várias partes do mundo e no Brasil, que integrar
as escolas em comunidades de aprendizagem funciona. Aliás,
a receita da boa escola pública tem quatro pilares:
famílias engajadas na educação dos filhos,
comunidade envolvida, professores capacitados e diretor preparado
para ser um líder. É assim em Nova York, em
Nova Déli, em São Paulo, em Salvador, em Bogotá
e em qualquer outro lugar.
Projetos desse porte são fáceis de defender,
mas difíceis de implementar, porque envolvem uma complexa
tecnologia comunitária. Só saem do papel quando
se tem a humildade diante do conhecimento, como mostrou o
reitor de Harvard, e a certeza de que, sem uma boa escola
pública -o que significa fazer do professor um ser
reverenciado por todos-, não existe democracia que
funcione eficientemente.
PS - O ministro da Educação, Tarso Genro, vai
lançar uma magnífica proposta para melhorar
o nível de ensino. Pretende estimular os Estados e
os municípios a ter programas específicos para
a formação de diretores, ensinados a serem não
apenas dirigentes mas empreendedores comunitários.
Foi assim, exatamente assim, que tiveram início grandes
projetos de recuperação de escolas no mundo.
Esta coluna é publicada originalmente
na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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