Durante a campanha eleitoral, quem
questionasse a preparação de Lula para assumir
a Presidência da República era invariavelmente
acusado de preconceituoso, incapaz de aceitar a idéia
de que um operário talentoso, inteligente e articulado,
mesmo sem educação formal, pudesse dirigir o
país.
Embaralhava-se a discussão com argumentos do seguinte
tipo: o Brasil sempre foi governado por presidentes com diploma
de ensino superior e "nada" foi resolvido.
O clima de desgoverno a que vimos assistindo nas últimas
semanas é a prova de que aqueles argumentos sobre a
formação de Lula não eram preconceituosos
-infelizmente. Certamente esse é um dos fatores, entre
vários outros, que explicam as pesquisas divulgadas
na sexta-feira sobre as quedas expressivas do prestígio
do presidente e de seu governo e que talvez ajudem também
a entender uma parcela, ainda que pequena, da difícil
situação de Marta Suplicy, como revela hoje
a Folha. A crise atinge a imagem de todo o PT.
A vantagem educacional de Lula viria de sua familiaridade
com a dor dos miseráveis -a chamada "escola da
vida". Concentrou-se, então, o debate mais na
inegável sensibilidade social do candidato e nos poderes
discutíveis da escolaridade formal, simbolizada pelo
diploma, que no talento gerencial, no conhecimento da realidade
da administração e na intimidade com os principais
problemas brasileiros.
Pouco importa mesmo o diploma. Nisso Lula estava e está
certíssimo. Se apenas a formação acadêmica
funcionasse, as universidades brasileiras não estariam
no estado de penúria em que estão.
Educadores acreditam há muito tempo que a experimentação
e a vivência com desafios são peças fundamentais
no processo de aprendizagem. Sabem que há meios eficazes
de apreensão do conhecimento, como a intuição,
cujos mistérios são cada vez mais estudados.
Intuição e experimentação são
coisas que Lula tem de sobra, mas não são suficientes.
Como a nação estava embevecida pelo pensamento
mágico -a crença na existência de um salvador
da pátria, de alguém que pela vontade resolve
tudo o que está aí-, revelou-se o óbvio:
para qualquer um, com ou sem diploma, seria um drama pegar
o país naquele momento de inflação em
alta e de crescimento baixo, com todas as limitações
orçamentárias. A tarefa seria ainda mais complexa
para alguém que nunca geriu nem mesmo uma prefeitura
ou uma secretaria de governo, além de estar cercado
de novatos em máquina federal.
Abatido José Dirceu, desfez-se o modelo que, supostamente,
serviria para conduzir o governo enquanto Lula mantivesse
a conexão com a população -graças
ao seu extraordinário encanto comunicativo, à
sua sincera vontade de mobilizar o país contra a miséria
e, acima de tudo, à sua credibilidade.
Digo aqui "supostamente serviria" porque ainda
não se sabe se José Dirceu detém mesmo
capacidade para ser chefe do Gabinete Civil nesse estilo de
governo. É, afinal, a sua primeira experiência
desse porte. Dizia-se, antes mesmo do caso Waldomiro Diniz,
que ele tinha uma pretensão inversamente proporcional
a seus dotes administrativos, o que explicaria a demora na
tomada de decisões.
Na área econômica, Lula deixou o comando nas
mãos de Palocci, que, goste-se ou não, não
inova, mas tem coerência, seguindo as linhas deixadas
pelo governo anterior. Essa trilha fez com que, se de um lado
o crescimento caísse, de outro o país exibisse
serenidade. Afastou-se (é esse o ponto mais alto de
Lula) o espectro do caos.
Imaginava-se que o forte do governo viesse a ser a área
social; afinal, muitos dos melhores programas do país
vieram dos municípios que o PT dirigiu. E, aí,
ao contrário do que ocorreu na área econômica,
a regra foi o tumulto.
Lula não tinha idéia da complexidade da máquina
pública e nem sequer se deu ao trabalho de estudar,
em profundidade, a intrincada teia de programas sociais do
país. Foram desmontados programas que estavam em andamento
e, ainda por cima, foram mudadas as equipes acostumadas à
burocracia.Lançaram o programa Fome Zero, reproduzindo,
apesar de todas as advertências, erros do passado. Deu
no que deu. Lançaram o programa Primeiro Emprego para
ajudar os jovens e não se empregou ninguém.
Recursos das bolsas para combater o trabalho infantil estão
atrasados. Os planos da educação vivem um tumulto
de idas e vindas. Apenas agora estão tentando dar racionalidade
aos programas, buscando a articulação entre
os projetos sociais.
Lula é inteligente, é um aprendiz nato, quer
acertar (até porque quer se reeleger) e ainda tem tempo
de evitar que seu governo acabe antes do tempo. Vai depender,
porém, de ter a seu lado equipes experimentadas em
máquina pública federal.Nos debates sobre eventuais
mecanismos para tocar o governo, o que se procura, quando
se fala nos atributos ideais de um "gerentão",
é quase um primeiro-ministro. E talvez seja mesmo uma
solução.
PS - Por falar em aprendizado, na semana passada, foi apresentado,
em São Paulo, um espetáculo que mostrou até
onde a educação consegue chegar. Dando seqüência
à experiência surgida no Rio de Janeiro, o coreógrafo
Ivaldo Bertazzo chamou jovens de escolas públicas e,
por dez meses, ensinou-os a dançar, usando ritmos da
Índia e do Brasil. Além das aulas de dança,
ensinaram aos estudantes várias outras matérias,
a fim de aumentar o seu repertório de expressão,
entre as quais língua portuguesa e ciências.
Se eu tivesse de listar cinco dos melhores projetos que já
presenciei, tanto aqui como no exterior, de arte-educação
e inclusão social, certamente o espetáculo de
Ivaldo estaria entre eles.
Esta coluna é publicada originalmente na Folha
de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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