|
O principal debate da semana passada
no país girou em torno da conduta ética de Zeca
Pagodinho, que, ao aceitar uma bolada da Brahma, abandonou
a Nova Schin, marca de cerveja da qual era garoto-propaganda.
Com a ajuda providencial de alguns milhões de reais,
ele abandonou um amor de verão e voltou, feliz e bem
mais rico, à velha paixão. O pior, no entanto,
não está aí.
Nessa guerra, Zeca Pagodinho é
um detalhe tão passageiro como um amor de verão.
Pela quantia envolvida e pela genialidade das peças
publicitárias, como vimos na semana passada, a questão
essencial é a abundância de recursos para convencer
as pessoas, especialmente os jovens, a associar álcool
a saúde, beleza, sensualidade, modernidade.
É uma luta desigual, num país
em que, segundo pesquisas da Unesco, crianças começam
a beber, em média, aos 13 anos.
Os índices de acidentes de trânsito e de violência
que envolvem jovens alcoolizados bem poderiam ser ilustrados
pelo trecho de uma das músicas mais conhecidas de Zeca
Pagodinho: "Deixa a vida me levar / Vida, leva eu".
Apesar de errar na construção sintática,
fazendo uso inapropriado do pronome do caso reto, a letra
acerta na tradução emocional dos números.
Os pais de adolescentes colecionam
histórias e mais histórias de colegas de seus
filhos -ou mesmo dos próprios filhos- que se deixam
levar pela vida, expostos aos riscos do consumo do álcool.
Desorientados, educadores recebem relatos sobre as festas
de estudantes, nas quais se bebe até cair.
Porre e juventude não se casaram
agora -é óbvio. Mas o nível de abuso
a que estamos assistindo é algo novo, talvez provocado
por um pacote que inclui desestruturação familiar,
falta de limite, demanda por sucesso a qualquer preço,
estresse urbano, ausência de utopias, estímulo
quase histérico ao consumo como estilo de vida. Repete-se
por todos os lados que consumir é prazer.
Psicólogos, educadores e psicopedagogos
têm revelado preocupação com uma crescente
indisciplina (e cada vez mais agressiva) em sala de aula,
enquanto detectam em estudantes evidentes sintomas de baixa
auto-estima, de depressão e de ansiedade.
Quem quiser tirar as dúvidas
consulte, por favor, a orientadora educacional de qualquer
escola que mereça o título de escola.
Não vou aqui fazer papel de
moralista, defendendo lei seca ou mesmo proibição
radical da propaganda. Cresci ouvindo, durante as cerimônias
religiosas, que nós, judeus, seríamos supostamente
menos propensos ao alcoolismo porque, desde bem pequenos,
tomamos vinho pelo menos uma vez por semana, a exemplo dos
italianos -e essa atitude ajudaria a desmistificar o álcool.
Nem vou apelar, ingenuamente, para
o desprendimento dos anunciantes.
Até reconheço que, entre
publicitários, há gente preocupada com o bombardeio
de mensagens perigosas associando álcool a liberdade.
Certamente existem entre publicitários, assim como
entre executivos de cervejarias, pais de filhos adolescentes
que devem, como eu, passar a madrugada de olho na porta, preocupados
com o que acontece na rua.
O problema é a desigualdade
na disseminação de atitudes e de informações.
Este artigo que você está
lendo tem entre os jovens o impacto semelhante ao da frase
insossa e fria: "Beba com moderação",
apresentada depois de exuberantes paisagens com música,
mulheres, praias.
É a batalha de Golias
contra um Davi de mãos atadas. Como se não bastassem
a genialidade publicitária e as fortunas para sustentá-la,
a sociedade não está conscientizada dos perigos
do excesso de álcool. Governos não desenvolvem
programas preventivos. São raras as escolas que trabalham
o tema do abuso de álcool; quando o fazem, ele aparece
de forma moralista, "careta", com o jeito da tal
"ilha quadrada". Famílias pouco se incomodam
com isso; estão mais atentas à possibilidade
de os filhos usarem maconha.
Daí que, para mim, a atitude de Zeca é tão
relevante nessa confusão como seu cachê no bolo
publicitário das cervejas. Como mostrou o magistral
artigo de Danuza Leão, na terça-feira, ele é
apenas um bobo útil orientado por uma esperteza inútil.
PS - Aos educadores vai uma dica: experiências de redução
de danos, feitas inicialmente nos Estados Unidos -mais precisamente
em Seattle-, surtiram bons efeitos. Os jovens foram cercados
de mensagens de que poderiam beber, mas de que a alegria seria
maior se fossem espertos e não se expusessem a riscos
inúteis. Reproduziu-se essa experiência com calouros
da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Resultado: os estudantes
beberam em menos dias na semana e diminuiu a quantidade de
doses consumidas, bem como o número de vezes em que
eles ultrapassaram os limites do razoável.
Esta coluna é publicada originalmente
na Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
|