O presidente Lula aproveitou o Dia Internacional da
Mulher, na semana passada, para reverenciar sua mãe,
Eurídice Ferreira de Melo, a dona Lindu, que morreu
sem saber ler e escrever, mas nunca deixou, segundo ele, de
forçá-lo a estudar. Até os 10 anos de
idade, porém, Lula ainda era analfabeto.
Dona
Lindu constitui, de fato, um símbolo desse tipo de
mulher que, apesar de todas as dificuldades e sem o apoio
de marido, não se rende à miséria e estimula
nos filhos valores como o trabalho e o saber. Ela é
dessas heroínas que merecem mesmo todos os tributos
- é improvável que o Lula analfabeto até
os 10 anos de idade viesse a ser o Lula presidente sem esse
exemplo.
Mas, além de ter sido vítima
do analfabetismo, dona Lindu padeceu de outro tipo de ignorância,
jamais citado pelo presidente - uma ignorância que também
a elege símbolo de um Brasil que ainda persiste.
Como milhões de mulheres pobres,
ela não teve condições de planejar o
tamanho de sua família: gerou 12 filhos, quatro dos
quais morreram ainda pequenos. O pai de Lula, aliás,
teve com outra mulher mais 13 filhos.
Só a devastadora combinação
da ignorância popular com a irresponsabilidade pública
explica que cheguemos ao século 21 com a seguinte estatística
do IBGE: as mulheres mais pobres têm, em média,
cinco filhos. Como as mais abastadas sabem quanto custa educar
uma criança, não têm, em média,
mais de um filho.
A miséria brasileira pode começar
nos baixos salários, no desemprego, nas péssimas
condições de ensino, mas, certamente, é
na falta de planejamento familiar que se reproduz e se alimenta.
A semana passada trouxe mais dados
reveladores sobre a barbárie sexual brasileira. Uma
pesquisa de âmbito nacional da Unesco, divulgada na
segunda-feira, informou que 50% dos jovens de Fortaleza e
Goiânia -assim como 40% dos de Belém, de Vitória
e de Porto Alegre- não utilizam a camisinha.
De acordo com a Unesco, na faixa de
10 a 14 anos de idade, 33% das estudantes de Fortaleza engravidaram,
bem como 22% das de Cuiabá. Em todo o país,
mais de 10% das crianças de 10 a 14 anos tiveram relação
sexual.
É compreensível, portanto,
a informação divulgada na semana passada pelo
Ministério da Saúde: a incidência do vírus
da Aids entre meninas de 10 a 19 anos é seis vezes
maior do que entre meninos da mesma idade.
Para sintetizar esse estado de barbárie
sexual, basta lembrar que, anualmente, 1 milhão de
mulheres que mal saíram da adolescência têm
filho.
Ao lançar a campanha da fome,
acenando com seu passado, Lula nem se incomodou em atentar
para o óbvio a partir de sua vivência familiar:
a importância de ajudar a mulher a produzir menos famintos.
Existem, aqui e ali, experiências
interessantes, como a distribuição de preservativos
em escolas públicas combinada com a formação
de professores. Existem também planos antigos e tímidos
do Ministério da Saúde. Mas isso ainda é
pouco.
O planejamento deveria ser encarado
como um dos tópicos vitais da agenda educacional brasileira
-é o direito das cidadãs de obter informações
e meios para determinar quantos filhos querem ter. Será
que dona Lindu, tão ciosa da educação,
teria tido 12 filhos? Seria justo uma mãe ver quatro
de seus filhos morrerem por causa da miséria?
Em suma, a educação
sexual, aí incluindo o planejamento familiar, deveria
ser posta no mesmo patamar, por exemplo, da luta contra o
analfabetismo. Teria sido uma das boas lições,
além da tenacidade no saber, que dona Lindu poderia
ter deixado a seu filho mais conhecido.
Não consigo entender como Lula
fala tanto e com tanta emoção das lições
que aprendeu com a miséria - a fome, o analfabetismo,
a falta de condições de hospitais-, mas não
pronunciou até agora uma só palavra sobre o
efeito devastador do excesso de filhos nas famílias
mais pobres.
Justamente aí está a
combinação da ignorância do povo com a
irresponsabilidade das autoridades, que parecem não
se incomodar, de fato, com as centenas de milhares de crianças
que, atiçadas a pedir dinheiro nos semáforos
ou a engrossar a legião de marginais e marginalizados,
são vítimas da omissão.
PS - Embora discorde da posição
da Igreja Católica sobre planejamento familiar, entendo-a
e respeito-a, afinal, os padres se baseiam em princípios
morais e religiosos-, mas não entendo nem respeito
intelectuais e técnicos para os quais não deveríamos
nos preocupar com o problema, já que a taxa de fecundidade
está caindo. Eles deveriam sair por um instante de
seus gabinetes e andar por um bairro de periferia para ver
a penca de crianças em volta de uma mãe adolescente.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S. Paulo, na
editoria Cotidiano.
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