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Prensas antigas, tipos móveis
e desenhos gravados em madeira, incensados pelo cheiro de
tinta fresca, produzem uma inevitável sensação
de volta no tempo no ateliê Piratininga, na Vila Madalena.
Ali germina uma rebeldia -bem contemporânea- que começa
a aparecer nas ruas de São Paulo.
Naquele cenário, em que se
trabalha com peças já usadas na Antiguidade
pelos chineses e, há quase seis séculos, reiventadas
por Gutenberg para imprimir a Bíblia, trama-se uma
guerrilha contra a poluição visual.
Os artistas plásticos Ernesto
Bonato e Ulysses Boscolo convidam os visitantes do ateliê,
qualquer visitante, a posar, mesmo que seja o carteiro ou
quem faz a leitura da água. Com pedaços de carvão,
fazem os retratos numa placa de madeira. Do molde de madeira
-a matriz xilográfica-, saem centenas de cartazes artesanais,
feitos um a um, para serem afixados nas paredes e muros sujos.
"Estamos dialogando com a poluição,
estabelecendo uma nova linguagem de arte pública",
diz Ernesto, que, estudante da ECA (Escola de Comunicações
e Artes), da USP, foi aluno de Evandro Carlos Jardim, professor
que o fez apaixonar-se pela impressão na madeira e
pela arte comunitária.
As xilogravuras de Ernesto e de Ulysses
fazem parte da experiência, nascida -não poderia
ser, obviamente, em outro lugar- na Vila Madalena, para repensar
o visual das ruas, tomadas pela feiúra crônica.
Reunidos nos ateliês comunitários Piratininga
e Coringa, 18 artistas plásticos produzem obras inéditas,
misturando-as calculadamente à profusão caótica
de cartazes, desses que anunciam de shows a leitura de tarô.
"As imagens feitas pelo projeto produzem uma nova forma
de olhar a cidade e dão chance de vivência estética
a quem não frequenta galerias", diz Ulysses.
O próximo passo é criar
outdoors artísticos ambulantes, decorando os carrinhos
puxados por catadores de lixo reciclável. Involuntariamente,
esses carrinhos, espalhados e em movimento, virariam uma espécie
de instalação de arte, mostrando os surpreendentes
encaixes do tempo: os veículos de tração
animal, tão atuais no trânsito paulistano, já
faziam parte das gravuras de chineses na Antiguidade, quando
se empregavam os rudimentos da xilogravura -agora, em São
Paulo, quase dois milênios depois, são uma forma
contemporânea de protesto contra o caos visual.
Coluna originalmente publicada
no jornal Folha de S. Paulo, às quartas-feiras
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