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Ao xingar o atacante Grafite e
acabar na delegacia, o jogador Leandro Desábato entrou
na história do racismo no Brasil.
Raras vezes um ato de discriminação foi comentado
com tamanha intensidade no país, envolvendo pessoas
de todas as classes sociais e faixas etárias. O fato
teve, por exemplo, centenas de vezes mais impacto do que o
pedido de desculpas pela escravidão, em meio a lágrimas,
feito pelo presidente Lula em sua viagem pela África.
Boa parte da explicação do impacto da prisão
é óbvia: a mistura da paixão pelo futebol
com a tradicional rivalidade com os argentinos. Daí
resultou uma operação policial transformada
em espetáculo de mídia.
Há, porém, algo mais -e não é
tão óbvio.
O caso Grafite também reflete um movimento de proteção
da cidadania, fortalecida na década de 90, numa reação
à selvageria brasileira. É algo que pode ser
exibido em números e revela uma nova dimensão
do jogo de poder.
Pesquisa realizada pela Ipsos e divulgada pela Folha na semana
passada detecta que 9% dos brasileiros com idade superior
a 13 anos realizam algum tipo de serviço voluntário.
Traduzindo os 9%: são 3,1 milhões de pessoas
realizando ações públicas. Para comparar:
equivalem a cerca de seis vezes a quantidade de funcionários
do governo federal.
Um dado especialmente relevante dessa pesquisa, baseada numa
amostragem de 50.520 pessoas entrevistadas nas principais
cidades: cerca de 20% dos profissionais com ensino superior
são voluntários.
Isso significa que parte da elite intelectual -talvez até
como reação ao descrédito nos partidos-
não quer viver apenas orientada pela satisfação
de necessidades individuais e busca uma dimensão pública,
sem esperar pelo governo.
Esses dados se complementam com um levantamento do IBGE sobre
o tamanho do que se convencionou chamar de terceiro setor,
ou seja, o universo das organização não-lucrativas,
que abrange de sindicatos a creches comunitárias.
O que chama a atenção é, em especial,
a velocidade: de 1996 a 2002, o número de entidades
saltou de 107 mil para 276 mil. Juntas, empregam 1,5 milhão
de trabalhadores e movimentam cerca de R$ 18 bilhões
por ano. Note-se que o IBGE apenas captou entidades registradas
legalmente; as informais, que são muitas, ficaram de
fora da pesquisa.
Por consciência cívica ou simplesmente por marketing,
empresas dedicam-se à responsabilidade social. Nos
últimos anos, esse tipo de atividade tornou-se parte
da imagem empresarial. Isso significa uma peça importante
na formação de opinião e de influência
em políticas públicas.
Devido à demanda empresarial, surgiram cursos para
formação de gestores de terceiro setor em instituições
como a Fundação Getúlio Vargas, a USP
e o Senac, entre muitas outras pelo país, as quais
firmaram acordos com algumas das melhores universidades do
mundo, como Harvard. Responsabilidade social virou, enfim,
assunto obrigatório nos cursos de administração
-até porque as empresas oferecem salários competitivos
para esse gestor social.
Foi também na década de 90 que os educadores
se deixaram seduzir pela aplicação, na sala
de aula, dos chamados temas transversais -assuntos que permitem
abordagem simultânea em diferentes matérias.
Todas as escolas importantes usam a temática de cidadania
como eixo transversal e até incentivam ações
voluntárias, mesmo porque é sabido que alunos
voluntários desenvolvem a habilidade empreendedora
e estão mais preparados para enfrentar o mercado de
trabalho.
Foi nesse período que a comunidade começou a
entrar nas escolas públicas, oferecendo atividades
complementares. Nos últimos anos, cresceu o número
de escolas abertas nos fins de semana. Só na rede estadual
de São Paulo há 650 grupos, muitos dos quais
fundações ou institutos de grandes empresas,
que exercem algum tipo de parceria, que vai da formação
de professores e diretores, passando pela ajuda nas reformas
físicas, até o desenvolvimento de inovações
curriculares.
Apesar de parecer muito, tudo isso é muito pouco. Basta
ver a dificuldade de redução da miséria
brasileira no geral e o nível da educação
em particular. Não se pode negar, porém, que
os cidadãos estão menos desatentos, menos desarticulados
e menos irresponsáveis socialmente. Daí se consegue
entender, pelo menos em parte, como, num campo de futebol,
um negro é xingado e um branco vai para a delegacia.
PS - Toda essa articulação ajuda a explicar
por que, na semana passada, não parecia mais delírio
a discussão no Congresso sobre a proibição
do nepotismo. É preciso ser muito tapado para não
ver que somos uma nação socialmente selvagem,
politicamente indigente e administrativamente incompetente.
Assim como é preciso ser tapado para não ver
que, apesar disso, o Brasil nunca esteve tão bem, graças
à inusitada confluência de democracia, estabilidade
política, crescimento econômico, mais recursos
destinados à área da educação,
da saúde e da assistência, disseminação
da visão de responsabilidade social nas empresas e
nas escolas e, mais importante, melhor organização
da sociedade. É a evidência de que, diferentemente
da ditadura, a democracia sempre melhora.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S. Paulo, na editoria Cotidiano.
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