GRANDE SP - Mal Amadas só
no nome. O Teatro Experimental Feminista Urbano Mal Amadas
existe há 12 anos e discute a situação
da mulher, que sofre violência doméstica e a
relação desigual de gênero. O objetivo
é interromper por meio da arte o ciclo de violação
dos direitos das mulheres. As integrantes do grupo já
sofreram agressão física e psicológica
de seus maridos ou viveram em ambientes violentos.
O grupo Mal Amadas ocupa o espaço do Centro Informação
Mulher (CIM), criado em 1979 por feministas. O CIM centraliza
e registra a história de luta das mulheres. É
uma referência fundamental como um centro de documentação
e memória sobre a mulher no Brasil, atuando no movimento
de mulheres e prestando serviços principalmente para
grupos do movimento popular, entidades sindicais, pesquisadores
sociais e acadêmicos. Possui 30 mil títulos entre
livros, periódicos, teses, brochuras, folhetos, cartazes,
dossiês de imprensa, fitas cassetes, fotos entre outros.
No entanto, há oito anos atrás o CIM foi perdendo
financiadores e está passando por dificuldades, assim
a diretoria está fazendo um trabalho de recuperação
para voltar a atender todo tipo de público.
As Mal Amadas saíram de Diadema há cerca de
sete anos e assumiram a direção do CIM. Hoje,
o elenco conta com quatro pessoas já que muitas seguiram
outros caminhos. Por meio da linguagem teatral, as peças
da Mal Amadas sempre se preocuparam em retratar a realidade
da mulher e as relações de gênero. Após
as apresentações, há um debate entre
a comunidade e o elenco, em que muitas vezes as mulheres da
platéia dão depoimentos e pedem conselhos de
como devem proceder com seu companheiro violento. "O
grupo de teatro continuou a fazer atendimento, quando a gente
fazia apresentações nas escolas, nos conselhos,
nas ruas, nas favelas. Era como se fosse uma orientação
para as mulheres", afirma Marta Baião, presidente
do CIM, diretora do grupo das Mal Amadas e psicodramatista.
O CIM não é um serviço de atendimento,
mas de encaminhamento, pois as mulheres recebem uma orientação
para denunciar seu companheiro na Delegacia da Mulher e registrar
um boletim de ocorrência ou, simplesmente, ouvir um
desabafo e conversar com outra mulher que já sofreu
violência. Neuza Brito, atriz do grupo, está
desde 1992 no teatro e é uma boa ouvinte e conselheira,
pois apanhou duas vezes de seu marido e denunciou ambas na
delegacia. Sua história de violência começou
bem cedo já que via sua mãe sofrendo maus tratos
de seu pai.
A mãe de Neuza era operária e acordava perto
das quatro da manhã para entregar peças de automóveis
numa das indústrias da região do grande ABC
(SP). Quando caminhava com os filhos e um cabo de vassoura
nas costas, onde todas as peças estavam acomodadas,
era pega pelo marido, que estava escondido numa moita e tinha
o prazer de jogar todas as peças no chão.
Desde pequena Neuza vivia entre a violência e o alcoolismo
de seu pai. Mas conseguiu mudar o trajeto de sua história.
Na primeira vez que foi agredida, seu marido a socou e a prendeu
no sofá, deixando hematomas em seus braços.
"Eu já tinha visto minha mãe apanhar várias
vezes. Então, decici denunciá-lo. Fui até
o fórum e fiz o corpo de delito. Na hora de passar
no Fórum, o juiz virou para mim e disse: 'Se você
apanhou é porque alguma coisa fez de errado. Volta
pra casa e vai cuidar de seu marido e seus filhos'",
conta Neuza.
Depois de um tempo, o marido de Neuza quebrou uma vassoura
em cima dela. "Denunciei de novo, mas fui para a delegacia
da mulher. Quando foram entregar a intimação
na minha casa, meu marido estava dormindo e não queria
se levantar para assinar. A oficial de justiça falou
que se ele não levantasse, ela iria ao nosso quarto
e se ele não comparecesse no dia, a oficial iria buscá-lo
na firma", diz Neuza.
O marido de Neuza fala até hoje que nunca sofreu
uma humilhação tão grande e nunca mais
bateu em sua esposa. Ma a violência continuou no aspecto
psicológico. Ele a xingava e humilhava por palavras.
Apesar de tudo isso, Neuza trabalha no teatro e há
dois anos faz reciclagem de papel e produz blocos, agendaa
e álbuns de fotografia. Ela presta assessoria em entidades,
dando aulas de reciclagem. Não desistiu de seu sonho
que é cursar Artes Cênicas, mas para isso está
completando o Ensino Fundamental no supletivo.
"Meu marido começou a reclamar que eu trabalhava,
estudava e não via a cor do dinheiro. Até que
eu virei e falei que estava juntando para fazer minha faculdade.
Ele quis morrer. A partir desse dia, ele não queria
mais ajudar em casa. Mas não desisti de estudar",
declara Neuza.
De acordo com Marta Baião, atualmente, as mulheres
estão intolerantes à violência que tem
como causa as relações desiguais entre homem
e mulher e a falta de informação, acarretando
numa baixa auto-estima da mulher que não questiona
sua relação. Outro tipo de violência é
a simbólica, em que a mídia acirra cada vez
a mais a condição da mulher como produto e reforça
a relação patriarcal da sociedade. "A mídia
massacra a mulher. Isso foi coisificado. Nós somos
produtos, mercadorias, como cerveja", afirma Marta.
O teatro das Mal Amadas pretende estabelecer uma linguagem
horizontal. O público participa e é obrigado
a agir depois que assiste a peça. O teatro recupera
o poder transformador do sujeito, em que as pessoas se sentem
responsáveis por tudo de ruim e bom que ocorre na sociedade.
Com mais de 10 anos lidando com violência contra a
mulher, Neuza se tornou referência em sua comunidade
em Diadema. A vizinhança a procura para esclarecer
dúvidas e desabafar. Ela inclusive já teve que
esconder armas de vizinhos para evitar tragédias. "Os
maridos me xingavam e ameaçavam. Teve um colocava música
de galinha para me provocar até o dia que falei que
o denunciaria. Como ele tinha ficha suja, parou com a música
irritante", conta Neuza.
Além de Neuza, Elaine Militão também
faz parte do elenco das Mal Amadas. Não sofreu nenhuma
violência física, mas presenciou os maus tratos
em sua mãe e avó. Sua mãe faleceu há
quatros anos de câncer no pâncreas, depois de
quinze dias sua avó também faleceu. "Minha
mãe apanhou várias vezes até que um dia
foi denunciá-lo e o policial virou e disse para meu
pai que podia bater desde que não chegasse a sangrar
tanto, senão seria obrigado a levá-lo preso.
Enquanto isso, minha mãe gritava de tanta revolta",
revela Militão.
"A primeira vez que vi minha mãe apanhando foi
aos três anos de idade e ele conseguiu quebrar o dente
da frente. Ele ficava com raiva de mim, porque sempre entrava
no meio da discussão. O pior que não era só
minha mãe que sofria. Até minha avó apanhava
e o eu pai chegava a arrancar os cabelos dela. Depois de passar
a briga, ele dizia com a maior cara de pau que estava possuído.
Cresci amargurada, achando que nunca iria casar", conta
Militão, que está casada há 11 anos.
Militão participou do grupo Os Filhos da Cegonha,
um grupo formado por Marta quando fazia oficina entre os educadores
da Escola Municipal Manuel Fiel Filho, que mais tarde se juntou
com as Mal Amadas para discutir a relação da
mulher na sociedade e violência nessa classe.
Tanto Neuza quanto Marta e Militão, afirmam que num
cenário de violência doméstica, muitos
maridos não permitem o uso de preservativos nas relações
sexuais, deixando as mulheres expostas a doenças sexualmente
transmissíveis (DST). O Programa Nacional de DST/Aids
publicou o Boletim Epidemiológico da Aids, divulgado
na última terça-feira (30/11), que teve 12599
notificações, em 2003, contra 10566, em 1998.
Nos primeiros seis meses desse ano foram registrados 5538
casos de Aids entre mulheres. Esse número revela um
crescimento da doença entre as mulheres.
"Minha avó também sofria violência
com seu primeiro marido. Até que um dia ela apanhou
tanto que uma vizinha usar uma espingarda pra impedir o marido
dela de chegar perto. Nessa madrugada, ela resolveu partir
da região próxima a Juazeiro do Norte [CE]",
conta Militão.
Para Militão, o teatro representa alegria. É
também a oportunidade de falar o que não consegue
dizer em palavras e representar pela expressão corporal.
As Mal Amadas vão trabalhar os contos de Clarice
Lispector, em espetáculo chamado As Narradoras de Clarice.
Enquanto isso, o público pode conferir seu espetáculo
Ovo - Metáfora do Sacrifício Feminino, uma teatralização
de um conto de Clarice Lispector, o Ovo e Galinha. "O
espectador tem que estar ciente que ver um ovo é impossível,
mas escutá-lo , sentí-lo pode ser uma experiência
prazerosa, mesmo porque ele é oval, por isso óbvio.
Uma viagem filosófica-metafísica nas profundezas
de um ovo, mesmo sabendo que ele é apenas a alma de
uma galinha", diz Marta.
Serviço
CIM - Centro Informação Mulher
Praça Roosevelt, 605, Consolação - São
Paulo
Tel. 3256-0003
centroimulher@ig.com.br ou malamadaneuza@ig.com.br.
As informações são
do site Setor 3.
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