Julia
Dietrich
especial para o GD
"O tráfico de drogas é um trabalho. Embora
informal e ilegal, o tráfico tem regras, obrigações
e um contrato a ser cumprido. E, como qualquer atividade capitalista,
precisa garantir sua estruturação para manter
com segurança o consumo e ponte com seu consumidor.
O jovem que entra no tráfico conhece bem o contrato
que assina, porém esse mesmo lugar que pode lhe custar
a vida, é o que lhe mantém vivo." A corajosa
afirmação é da doutora em psicologia
e pesquisadora do Instituto de Saúde de São
Paulo, Márcia Feffermann, organizadora e palestrante
da mesa Juventude e Sociedade do Trabalho, parte do Seminário
Juventude, Violência e Políticas Neo-liberais,
realizado na cidade de São Paulo.
Segundo a pesquisadora, os jovens se inserem no tráfico
porque nele encontram um espaço de continência,
responsabilidade, trabalho e referência. "Trabalhando
com escolas públicas, ouvi de muitas meninas que não
estão propriamente inseridas no tráfico, inúmeros
elogios aos rapazes que carregam fuzis. O tráfico garante
status de poder e garante dinheiro que permite a inserção
social, ainda que fictícia, pelo consumo."
Segundo ela, a violência juvenil se organiza pela vulnerabilidade
de suas vítimas e agressores, construindo uma situação
de duplo-risco pela baixa escolaridade e falta de inserção
no mercado de trabalho que leva ao consumo de entorpecentes
como o álcool e as drogas e à integração
em grupos de reconhecimento social, manifestadas nas gangues
e no tráfico por ilusões de consumo e poder.
"Entretanto, não há relação
direta entre pobreza e violência. Existe sim uma violência
de Estado que se manifesta ora hiper poderoso na sua atuação
coersiva, ora omisso na sua responsabilidade social,"
garante a pesquisadora, observando que, no país, as
leis perderam seu poder normativo, criando um vácuo
para que pequenos grupos possam atuar. "Todos se sentem
vulneráveis e todos buscam atacar," explica.
Um exemplo claro dessa teoria é o recente caso-denúncia,
envolvendo os policiais aposentados no Rio de Janeiro. O jornal
O Globo desse final de semana denunciou as milícias
que atuam com carta branca do Estado para prender e coagir
jovens envolvidos ou suspeitos de envolvimento no tráfico
de drogas para garantir a segurança dos Jogos Pan Americanos
de 2007. "Esses policiais não podiam ter esse
tipo de poder, ainda mais, legitimado governamentalmente.
É uma situação que constrói um
medo social," explica.
A pesquisadora aponta que o jovem é a vitrine que
exacerba essas relações, fomentadas pelo preconceito,
medo e raiva, afirmando que a sociedade se organiza para julgar
todos os jovens pobres, especialmente os negros, como perigosos.
Em sua opinião, para pensar na construção
de políticas públicas, é preciso compreender
a complexidade das relações sociais que perpassam
e se refletem nos jovens, desmistificando os preceitos negativos
e preconceituosos propagados pelos meios de comunicação.
"Um exemplo disso, foi o Jornal do Brasil ter retirado
a tarja dos olhos do menino que podia estar envolvido no tráfico.
Amparados por uma falsa motivação de segurança
nacional, expuseram violentamente um jovem, rompendo com os
próprios princípios legais da imprensa,"
diz ela que observa que a mídia só ampara o
discurso burguês, perdendo a capacidade de compreender,
entender e até mesmo ver o outro.
Para ela, os jovens que estão no tráfico, embora
sejam cunhados como os propagadores da violência, são
os que mais morrem por homicídios. "Eles valorizam
a força e ignoram e repudiam a fragilidade do outro,
reproduzindo os modelos que o próprio capitalismo constrói
e propaga nas relações sociais, de consumo e
trabalho," explica.
Segundo os dados obtidos na pesquisa de Fefferman, esses
jovens são vistos como ameaça para todos, pois
denunciam as características exacerbadas da sociedade
de consumo."Eles precisam ser astutos para garantir a
sobrevivência. São compulsivos porque a lógica
do capital é essa e são cruéis porque
são vítimas de inúmeras e constantes
humilhações, produtos dessa invisibilidade governamental
e, em contrapartida, intensa, visibilidade para a polícia,"
diz
"É impossível pensar em melhorar a situação
do genocídio de jovens, se continuarmos a impor de
cima para baixo as ditas políticas públicas
e sem consultar e entender a imensa capacidade que eles têm
de construir e transgredir modelos que, embora continuem reproduzidos
pelos governos e entidades, estejam completamente esgotados,"
conclui.
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