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Madrugada
de sábado, 2h. Se para muitos esse é o dia ideal
para sair, passear e se divertir com os amigos, para Ademir,
sábado é sinônimo de dedicação
e disponibilidade total, até às 6h. Ao lado
do telefone, no Posto do CVV - Centro de Valorização
da Vida - de São Bernardo do Campo, ABC Paulista, ele
aguarda o chamado de alguma pessoa desesperada, angustiada
e, por que não, alegre também. São pessoas,
muitas vezes, que não têm com quem conversar,
desabafar e precisam de ajuda. Ouvir é a palavra de
ordem. "São quatro horas que você tem que
estar totalmente disponível para aquela pessoa. O nosso
trabalho é estar junto com ela. Valorizamos aquilo
que é importante para ela e não para nós",
ressalta.
É com princípios como este que há 43
anos o CVV desenvolve o seu trabalho pelo país. O centro
foi fundado em 1962, em São Paulo, em decorrência
do aumento no número de casos de suicídio nas
grandes metrópoles. O objetivo principal é a
valorização da vida como prevenção
ao suicídio, por meio do apoio emocional oferecido
pelos voluntários. São mais de 2700 voluntários
no Brasil, que atuam em 57 postos de atendimento, em 50 cidades
de 17 estados e do Distrito Federal. Em 2003, os voluntários
do CVV atenderam a aproximadamente um milhão de telefonemas
(uma ligação a cada 33 segundos).
O serviço do CVV é gratuito e é oferecido
de forma ininterrupta, 24 horas todos os dias por telefone,
e também pessoalmente, das 8h às 18h. Em cada
posto do CVV há de dois a quatro telefones, atendidos
por 40 a 60 voluntários, em seis turnos diários
de trabalho, de quatro horas cada. A proposta do trabalho
do CVV não é aconselhar, mas permitir que a
pessoa perceba sozinha o que precisa e possa dar um novo rumo
para a sua vida. Não é uma terapia, mas sim
um apoio emocional, baseado na oferta de atenção
e calor humano. Como a pessoa não precisa se identificar,
sequer dizer o nome, sente-se livre para falar, ou mesmo ficar
em silêncio, pelo tempo que necessitar e lhe é
garantido o sigilo.
A pessoa que liga direciona a conversa. Ela fala o que quer,
desliga quando deseja e volta ou não a ligar. Se no
momento do telefonema, pedir socorro, o CVV buscará
formas de ajudá-la. O voluntário se identifica
somente quando a pessoa pede. Isso porque, muitas vezes, para
quem liga é importante e lhe dá mais conforto
conversar com uma mulher ou com um jovem, por exemplo.
"Afinal, será que aquela pessoa quer ouvir o
que você acha ou a sua experiência? No momento
da solidão, ela pode esperar algo diferente de você",
comenta a voluntária Tânia. Ela lembra que a
idéia é "aplicar uma vacina da prevenção",
ou seja, incluir ingredientes para amenizar o sofrimento dela,
como amor, afeto, ânimo, atenção, alegria,
palavras positivas, respeito, compreensão, ajuda, valorização,
aceitação, e tantas outras coisas. É
tudo isso que irá permitir minimizar as razões
que a levaria ao suicídio: desespero, depressão,
solidão, baixa auto-estima, vícios, violência,
complexos, doenças.
Segundo dados divulgados pelo CVV, cinco em cada 100 mil
brasileiros, com idade entre 15 e 24 anos, cometem suicídio.
De acordo com o próprio CVV, os números, no
entanto, podem não representar a realidade, pois em
muitos casos o real motivo da morte é camuflado devido
à vergonha, motivos religiosos e necessidade de receber
pagamentos de seguros de vida. Diferentemente das demais formas
de violência, o suicídio tem como agressor a
própria vítima; e como principal causa, a solidão.
Por isso, o voluntário deve estar preparado para saber
compreender todas as pessoas, sejam elas crianças,
jovens, adultos e idosos que decidem ligar para o CVV. Afinal,
a solidão pode atingir qualquer um, independentemente
de idade, sexo, classe social ou profissão. São
situações diversas e que envolvem todos os tipos
de sentimentos, desde remorso, ódio, problemas de saúde
e sexuais, ou de relacionamentos afetivos.
Para manter a privacidade das pessoas que ligam, os voluntários
não podem expor os casos que atendem, mas, em sua maioria,
não são situações extremas, como
muitos possam pensar, em que a pessoa do outro lado da linha
pode estar prestes a se matar. "Há casos até
de pessoas que ligam para contar coisas alegres, que receberam
uma promoção, justamente porque não têm
ninguém na família para dizer", comenta
Ademir. A voluntária Alaíde lembra ainda de
uma pessoa que ligou para agradecer pelo CVV existir, pois
há 30 anos ela ligava. "É estranho, mas
a competitividade do mundo de hoje impede até de algumas
pessoas contarem sua felicidade para as outras, com medo de
que isso se vá".
O trabalho do voluntário, portanto, está longe
de ser algo simples. Alaíde, que é voluntária
do CVV há 11 anos, lembra que, na correria no dia-a-dia,
as pessoas falam muito mais do que ouvem, expõem suas
necessidades e, muitas vezes, não se importam com o
que outro está precisando. "As pessoas acham que
é só sentar lá na cadeira, esperar o
telefone tocar e ouvir. E não é assim fácil
não. Nós estamos acostumados a escutar e não
a ouvir. E são coisas muito diferentes. Você
tem que trabalhar os seus próprios preconceitos. É
ver aquela pessoa com os olhos dela e não com os meus.
É a vivência do outro", comenta Ademir,
que é voluntário há dois anos. "Claro
que não é aceitar tudo com naturalidade, mas
com muito amor e respeito", completa Alaíde.
Por isso, para se tornar um voluntário do CVV é
preciso, além de ter mais de 18 anos, e disponibilidade
de tempo, ter espírito solidário e estar disposto
ao autoconhecimento. "É um trabalho difícil
porque mexe com o sentimento das pessoas, com o emocional
mesmo. Tem que estar preparado. Às vezes, é
você que está precisando de ajuda e passa isso
para quem está do outro lado da linha. Não pode
haver essa relação", explica Ademir.
Desta forma, os novos voluntários precisam participar
de um curso de formação e capacitação.
Na primeira semana, são transmitidos os princípios
e a filosofia do trabalho, abordando os seguintes temas: o
CVV; a pessoa que procura o CVV; o voluntário; e a
relação de ajuda. Na segunda parte do treinamento,
são realizados exercícios práticos, com
nove encontros, sempre com acompanhamento de monitores e em
grupos, para que haja troca de experiências.
Segundo Ademir, é a própria pessoa que vai
fazendo, ao longo do processo, a sua seleção.
Isso porque, muitos acabam percebendo que não estão
preparados para assumir esta responsabilidade. "É
um trabalho que requer muito da pessoa. Ela tem que se doar
e precisa trabalhar consigo mesma. E, às vezes, as
pessoas não estão dispostas a mudar naquele
momento", comenta Alaíde. Os cursos, que ocorrem
normalmente três vezes por ano em cada posto, chegam
a reunir cerca de 50 pessoas por turma. No entanto, no final,
o número acaba chegando a cerca de 15.
Maria de Lourdes, por exemplo, participou pela primeira
vez do curso em julho do ano passado. Na época, ela
percebeu que aquele ainda não era o seu momento no
grupo. "Eu é que estava precisando de ajuda",
conta. Agora, ela resolveu voltar para poder colaborar. "É
muito bom imaginar que o fato de você estar ali para
ouvir já fez uma pessoa sorrir".
Muitos ainda, na opinião de Alaíde, preferem
optar por aqueles trabalhos voluntários em que é
possível ver o resultado final palpável, o que
não ocorre com o CVV. "Eu não sei o que
acontece depois que a pessoa desliga. Só durante a
ligação. Claro que muitos ligam novamente para
agradecer a ajuda ou para conversar novamente porque se sentiram
bem. É assim que analisamos", comenta Ademir.
Para Alaíde, o fato da pessoa demonstrar estar mais
tranqüila e aliviada já é um indicador
de que a ligação fez bem.
Mas não é somente no início das atividades
que os voluntários passam por treinamento. Há
um trabalho constante, para que possam se aperfeiçoar
e também não trazer para si os problemas de
quem os procura, ficando deprimidas. Alaíde ressalta
que, muitas vezes, as histórias de vida dessas pessoas
ficam muito vivas na sua cabeça, mas é preciso
entender que, quando ela deixa o seu plantão, aquilo
ficou para trás. "E o contrário também
é válido. Aqui dentro [no posto] esquecemos
de nós mesmos", completa.
Se o trabalho do CVV se torna importante para as pessoas
que precisam ser ouvidas, ele muda também a vida daqueles
que estão ali, dispostos a ajudar. Para Alaíde,
11 anos dedicados ao voluntariado permitiram que ela mesma
se conhecesse melhor. "Passei a compreender o mundo de
outra maneira. Sem falar que me encanto muito com o trabalho
do CVV. É uma filosofia de vida maravilhosa. Sonhamos
com uma sociedade mais justa, em que não precise existir
o CVV, em que as próprias pessoas possam se bastar".
Para Ademir "cada ligação é sempre
a primeira".
* Para manter o sigilo e a privacidade do trabalho, os voluntários
se identificam somente pelo primeiro nome. A profissão
não é divulgada.
Serviço:
Centro de Valorização da Vida
Informações sobre atendimento: no site do CVV
é possível encontrar o endereço de todos
os postos de atendimento. Pessoas interessadas em serem voluntárias,
também podem se cadastrar.
Novos postos do CVV: qualquer entidade filantrópica
pode instalar um posto do CVV. Esses postos, ainda que sob
a responsabilidade de uma entidade já reconhecida por
sua atuação benemerente, passam a se designar
Postos do CVV e recebem material didático e orientação,
por intermédio dos voluntários do CVV. Os postos
se mantêm com a contribuição dos próprios
voluntários, além da realização
de eventos, festas, bazares.
DANIELE PRÓSPERO
do site setor3
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