A desigualdade
brasileira — que já expôs sua face nas
diferenças de escolaridade, rendimento, origem familiar,
lugar de nascimento — se revela também nos locais
de moradia. Nas três principais capitais do país
(Rio de Janeiro, São Paulo e Belo Horizonte), já
são evidentes o abismo entre a renda dos moradores
das favelas e dos bairros, bem como a discrepância das
oportunidades educacionais para crianças e jovens.
Estudo inédito do professor Luiz Cesar de Queiroz Ribeiro,
do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional
(Ippur-UFRJ), mostra que, no mercado de trabalho carioca,
quem vive nas comunidades populares ganha de 14% a 31% menos
que os habitantes do asfalto. Ainda que tenham o mesmo grau
de instrução.
Coordenador do programa Observatório das Metrópoles,
uma rede de 24 entidades que reúne 70 pesquisadores
dedicados a temas econômicos, sociais, urbanísticos
e governamentais, Queiroz Ribeiro usou as informações
do último censo demográfico para agrupar os
indícios da chamada segregação residencial.
Para ele, a sensação de isolamento, não
apenas físico mas sociocultural, das populações
que vivem nas favelas ou em bairros pobres é mais um
elemento de reprodução da desigualdade brasileira,
que está entre as quatro maiores do mundo:
"Estar num bairro ou área empobrecida alimenta
um ciclo de reprodução da pobreza. Significa
dizer que o bairro onde se mora também é um
bloqueio ao acesso às oportunidades de trabalho e de
educação."
No estudo intitulado “Segregação residencial
e segmentação social: o efeito vizinhança
na reprodução da pobreza nas metrópoles
brasileiras”, Queiroz Ribeiro revela que mesmo trabalhadores
analfabetos ganham menos se morarem em favelas. Enquanto um
morador do asfalto ganha cem reais, o outro não passa
de R$ 86. A diferença aumenta à medida que a
escolaridade cresce: trabalhadores com quatro a sete anos
de estudo ganham 29% menos, se viverem nas comunidades populares.
Quem estudou de oito a dez anos perde 31%.
‘É como a corrida entre a tartaruga e o coelho’
Formado em economia e contabilidade e com o curso de direito
interrompido no nono período, Danilo Ferreira de Souza
acumula histórias de discriminação em
razão do lugar onde vive desde que nasceu, há
54 anos, o Morro dos Cabritos, em Copacabana:
"Quem mora em certos locais é considerado inferior.
Esse é um dos tipos de discriminação
no Brasil. Quem vive na favela enfrenta uma desvantagem de
30% a 40% em relação aos que nasceram na elite.
É como uma corrida entre uma tartaruga e um coelho."
Souza já foi subgerente de renda fixa de banco, controller
, gerente de empresa de mudanças, administrador, mas
há nove anos está sem emprego formal. Nesse
período, para manter a casa de cinco quartos, três
andares e 120 metros quadrados, trabalhou como pedreiro, carpinteiro
e professor:
"Sofri discriminação duplamente. Perdi
uma vaga de economista porque tinha trabalhado como motorista.
E deixei de me empregar como motorista porque era formado
em economia."
A assessora política Erika Ferreira de Souza, filha
mais velha de Danilo, herdou do pai a vocação
para o direito. Passou no vestibular em 2003, mas não
começou o curso por falta de dinheiro para pagar a
universidade: investe boa parte dos quatro salários-mínimos
que ganha na escola particular da filha, de 9 anos.
"Ainda não consegui realizar meu sonho. Entre
a minha faculdade e a escola da minha filha, optei por ela.
Se vivesse no asfalto talvez fosse diferente: eu ganho metade
do salário dos profissionais da minha área que
não moram em comunidade", diz Erika, que também
é presidente da União de Mulheres do Morro dos
Cabritos e técnica em fitoterapia.
O desconforto com a discriminação, contudo,
não imobiliza nem Erika nem sua família. O pai
tem 11 irmãos, mas foi o único a concluir o
curso superior. Seus dois filhos mais novos, assim como Erika,
planejam cursar a universidade. Os Souza jamais esconderam
a origem no Morro dos Cabritos, que vem da bisavó materna
de Erika, remanescente de uma comunidade de escravos que habitou
a região dois séculos atrás:
"Penso em sair do morro pelas dificuldades que enfrentamos
e para dar uma vida melhor à minha filha. Mas jamais
vou esquecer ou esconder minha origem."
A convicção de Erika contrasta com a de outros
moradores de comunidades populares que preferem lidar com
a segregação residencial camuflando-a. É
comum moradores de favelas ou da periferia usarem endereços
de parentes em bairros para não serem eliminados em
processos seletivos ou sofrerem discriminação.
Uma moradora do Complexo da Maré que não quis
se identificar conta que nem a irmã de seu namorado
sabe que ela vive em favela. Formada em jornalismo, nunca
conseguiu trabalho na profissão: é secretária.
Esconder o endereço foi a alternativa encontrada
O segurança e serralheiro Luiz Fernando da Silva
Castro, de 42 anos, também já usou endereço
de familiares para disputar vagas. Ele diz que se mencionar
que vive no morro corre o risco de nem ser chamado para uma
entrevista. E não tem dúvida de que moradores
de favelas ganham menos:
"É só falar em favela para ser discriminado.
O salário é menor, sim, mas acho que isso acontece
também pela falta de estudo das pessoas das comunidades",
diz Castro, morador do Morro dos Cabritos que estudou até
a terceira série do ensino fundamental e começou
a trabalhar aos 12 anos para ajudar o pai após um acidente.
O sociólogo Adalberto Cardoso, professor do Instituto
Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro (Iuperj),
diz que Castro está correto ao relacionar as poucas
chances no mercado de trabalho à baixa escolaridade:
"Um adulto terá mais chances de estar desempregado
e uma criança, de estar fora da escola se morarem em
favelas. A formação escolar é pior por
estarem na escola pública, de pior qualidade. Se a
qualidade do ensino é pior, é difícil
disputar as melhores vagas e ter os maiores salários."
Queiroz Ribeiro dividiu os locais de habitação
em três grupos que reúnem baixa, média
e alta escolaridade e rendimento dos moradores. Cruzou esses
dados com o percentual de crianças e jovens com atraso
escolar. A conclusão é que as áreas do
Rio onde há concentração de moradores
de baixa renda e escolaridade têm quase o dobro de crianças
fora da série recomendada para sua idade que nas áreas
de alta renda e nível de instrução —
62% contra 37%:
"O desempenho muda de segundo o grau de heterogeneidade
de uma região: crianças que moram numa favela
instalada num bairro de classe média alta tendem a
ter um desempenho escolar melhor que as que moram em comunidades
em que a pobreza é homogênea."
As informações são do jornal O Globo.
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