Começa
hoje o Fórum Social Mundial e o sociólogo português
Boaventura de Sousa Santos, 64 anos, um de seus organizadores,
fala ao Cidadania-e sobre suas expectativas para o novo encontro
em Porto Alegre . Grande observador da política brasileira,
Boaventura que durante a semana lançará os livros
O Fórum Social Mundial: Manual de uso (Cortez Editora)
e os volumes 4 e 5 de Reinventar a emancipação
social (Editora Civilização Brasileira) se mantém
como uma das mais potentes vozes contra a globalização
neoliberal. Seu ideário político, no entanto,
não reza pela cartilha do contra, mas pela teoria de
que é possível uma globalização
solidária cuja moeda de troca são as redes e
os movimentos sociais. Ainda nesta entrevista, o professor
da Universidade de Coimbra fala, com certo desencanto, dos
primeiros anos do governo Lula.
Cidadania-e: No ano passado, o Fórum Social
Mundial foi realizado em Mumbai, na Índia, para tornar
o encontro mais internacional e político. O senhor
acha que essa mudança alterou a percepção
da comunidade internacional sobre o Fórum?
Boaventura de Sousa Santos: Para mim, até então,
havia uma idéia de que o Fórum, embora mundial
no nome, era fundamentalmente latino-americano, com fortes
componentes europeus e norte-americanos. As Áfricas
estavam ausentes, assim como a Ásia. A ida para Mumbai
foi um desafio em muitos níveis.
Cidadania-e: Em quais níveis?
Boaventura de Sousa Santos: Politicamente falando, foi um
desafio levar o Fórum para um grande país democrático
como a India, mas com uma cultura diferente da cultura ocidental
e com novos modos de atuação política,
distintos daqueles que prevalecem no Ocidente. Foi também
um desafio a nível organizativo, dada a extensão
do país e dados os tipos de desigualdade que ainda
prevalecem nele, alguns dos quais estranhos ao Ocidente.
Cidadania-e: Como a divisão social por castas,
por exemplo?
Boaventura de Sousa Santos: Exatamente. O outro desafio foi
o da política internacional, principalmente pelo fato
de o Fórum acontecer numa região muito próxima
da guerra. Não da guerra colonial, mas a guerra dos
Estados Unidos, nomeadamente no Afeganistão. E numa
região com duas potências nucleares: a Índia
e o Paquistão. Por tudo isso, a decisão de organizar
o quarto Fórum em Mumbai foi considerada uma política
de risco.
Cidadania-e: E quais foram os resultados?
Boaventura de Sousa Santos: O resultado foi o melhor possível.
Foi um êxito. Valeu a pena arriscar. Conseguiu-se plenamente
a visibilidade, e para a Índia foi importante. Poucos
meses depois, o partido do governo, que era de direita, perdeu
as eleições. Penso que o Fórum não
foi um estranho naquela região da Índia. Acredito
que tenha sido uma vitória.
Cidadania-e: O que o senhor espera para esta quinta
edição do Fórum, que agora retorna a
Porto Alegre?
Boaventura de Sousa Santos: São muitos altas as nossas
expectativas, em primeiro lugar porque o FMS em Mumbai correu
tão bem que elevou o grau de exigência. Então
o Fórum em Porto Alegre tem que ser melhor, e para
isso é preciso um grande esforço. Em segundo
lugar, o Fórum em Porto Alegre se assenta num novo
modelo organizativo. Antes, havia uma divisão entre
as atividades organizadas centralmente pelo comitê organizador
e as outras atividades, organizadas pelos movimentos sociais.
Em nosso novo modelo, desapareceu a distinção
entre as atividades dos movimentos sociais e pelo comitê
organizador.
Cidadania-e: Durante esses cinco anos de Fórum,
houve algum freio na relação entre capital e
trabalho?
Boaventura de Sousa Santos: É muito difícil
fazer um balanço do Fórum nestes termos. Eu
penso que o Fórum é a primeira grande reação
global à globalização neoliberal. E ele
está a construir um fundo de resistência cujos
resultados são provavelmente indiretos. Mas eu citaria
vários: primeiro lugar, a alteração do
discurso das agências multilaterais como o Banco Mundial
e o FMI. Eles tiveram que mudar de discurso para se tornarem
mais sensíveis com questões como a da fome e
a da dívida externa. Mudou o discurso, mas não
mudou, ainda, a prática. O outro exemplo é a
própria diplomacia brasileira. Eu penso que não
se compreende a diplomacia brasileira sem levar em conta as
discussões que tiveram lugar nas duas primeiras edições
do Fórum. A marcha mundial de 15 de fevereiro de 2003
(manifestações mundiais contra a guerra no Iraque
que tomaram conta de várias capitais mundiais –incluindo
Londres, onde cerca de um milhão de pessoas se reuniu
no protesto) também não seria possível
sem o Fórum Social Mundial. Em diferentes continentes,
existem muitas lutas locais que se alimentam do novo impulso
criado pelo Fórum. Por exemplo, as lutas na Bolívia
contra a privatização da água em Cochabamba,
os movimentos populares na Argentina, dentre outros. Ou seja,
o FSM vai manifestando sua força por vias indiretas,
por meio das ações dos movimentos e associações
que o integram. A grande preocupação deste Fórum
é transformar os dias do Fórum em dias de planejamento
das ações coletivas. Estamos muito preocupados
que o FSM não seja apenas discurso, mas ação.
Cidadania-e: Isso é possível?
Boaventura de Sousa Santos: É. Estamos a lutar onde
os movimentos de diferentes paises começam a articular
as suas demandas. Por exemplo, o movimento feminista da América
Latina está em estreita colaboração com
o movimento de mulheres da Ásia...
Cidadania-e: É a força das redes, na
elaboração de políticas sociais...
Boaventura de Sousa Santos: Exatamente. É através
da rede que se passa dos discursos para a ação.
Cidadania-e: O senhor acompanha o governo Lula?
Boaventura de Sousa Santos: Tenho acompanhado de perto. Há
duas leituras possíveis. A primeira é que se
trata de um governo esquizofrênico. A política
externa é distinta da política interna. A segunda
leitura, aquela que eu desejo que seja a correta, me diz que
a política externa visa a fortalecer a posição
do Brasil de modo que em um futuro próximo o governo
tenha melhores condições para negociar e implementar
uma nova política interna. São duas leituras,
mas gostaria que a última estivesse correta. Nós
estamos no grau zero do medo e da esperança. Portanto,
pode vencer a esperança sobre o medo, como pode o medo
vencer a esperança. Depende, a meu entender, dos movimentos
sociais do Brasil. Eu tenho sugerido aos movimentos que eles
devem utilizar o FSM para pressionar o governo Lula, tal como
o Fórum de Mumbai pressionou o governo da Índia.
No caso da Índia, o governo era conservador e totalmente
hostil. No caso do Brasil, é um governo que, para ser
aliado das classes populares, tem de ser pressionado ativamente
por estas através de seus movimentos e associações.
Cidadania-e: Teivo Teivainen, da Rede pela Democratização
Global, afirma que o discurso do presidente Lula contra a
fome atrapalha a sua proposta de taxação sobre
especulação financeira como forma de financiar
uma ONU mais democrática. Como o senhor analisa essa
questão?
Boaventura de Sousa Santos: Eu penso que essas duas iniciativas
estão relacionadas. Não haverá luta contra
a fome se não houver taxação contra a
especulação financeira. Acredito mais no trabalho
da diplomacia brasileira na OIC e no Banco Mundial sobretudo
quando se articula com a Índia e a África do
Sul. Acredito mais nessa iniciativa do que na iniciativa do
presidente Lula na ONU.
As informações são
da Fundação Banco do Brasil.
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