O Projeto
do Milênio das Nações Unidas — um
plano de ação lançado na semana passada
para ajudar os países a cumprirem os Objetivos de Desenvolvimento
do Milênio — contou com a colaboração
de brasileiros em quase todas as suas 13 forças-tarefas.
Paulo Moutinho, coordenador de pesquisas do IPAM (Instituto
de Pesquisa Ambiental da Amazônia), participou do grupo
que estudou como promover o desenvolvimento sustentável
no mundo. Em entrevista à PrimaPagina, ele explica
que a sustentabilidade ambiental é essencial para a
erradicação da pobreza, pois a escassez de recursos
naturais geraria desigualdade.
Moutinho alerta que o avanço agrícola, por
meio do deslocamento de pastagens, provoca desmatamento. Ilustra
sua conclusão com números do INPE (Instituto
Nacional de Pesquisas Espaciais). Quanto à conservação,
propõe que o governo recompense financeiramente aqueles
que optarem por manter a floresta em pé e que incentive
a ocupação dessas áreas por comunidades
que vivam do extrativismo sustentável.
Sobre o Brasil, adverte: "se repetirmos os últimos
20 anos na Amazônia, ou na Mata Atlântica, ou
no Cerrado, estaremos optando pela autodegradação
ambiental, pela grande concentração de renda
e pela manutenção da pobreza".
Confira abaixo os principais trechos da entrevista:
Como o relatório chegou à conclusão
de que a sustentabilidade ambiental é um princípio
decisivo para a redução da pobreza?
Paulo Moutinho: A sustentabilidade ambiental está
diretamente relacionada à habitabilidade do planeta.
Quando existe um ambiente em transformação,
é preciso antever se em algum ponto do futuro ele vai
comprometer a habitabilidade da Terra. E, nesse caso, a habitabilidade
do planeta é fundamental para a erradicação
da pobreza.
Mas a China, que tem sido muito criticada do ponto de vista
ambiental, conseguiu uma redução de pobreza
significativa na última década.
Moutinho: Volto à questão da habitabilidade
futura. É possível que haja momentos de riqueza
bastante precisos, como acontece na China, que hoje tem um
grande crescimento econômico, ou mesmo em alguns lugares
do Brasil onde a qualidade de vida aumentou. Só que
em bases insustentáveis, ou seja, toda essa riqueza
pode estar comprometida no futuro.
Crescimento econômico está diretamente ligado
a desenvolvimento socioambiental. Crescer economicamente não
significa necessariamente se desenvolver de maneira sustentável.
Nós temos exemplos clássicos, como ciclos de
extrativismo e riqueza na Amazônia, nos quais há
uma explosão de renda, com queda acentuada após
o comprometimento do ambiente ou do recurso explorado. E então
você entra num ciclo de decadência. Portanto,
esse é o desafio. A pobreza, agora ou no futuro, só
vai ser erradicada tendo sustentabilidade ambiental.
O Sr. falou em extrativismo. Historicamente, o Brasil dependente
economicamente do seu setor primário, sobretudo de
atividades ligadas ao cultivo do solo, como é o caso
da soja hoje em dia. O avanço da agricultura compromete
os recursos naturais? Ele necessariamente desmata?
Moutinho: Esse é um assunto bastante polêmico.
Na Amazônia, se pegarmos os dados de monitoramento do
desmatamento feito pelo INPE (Instituto Nacional de Pesquisas
Espaciais) desde 1978, chegamos à nítida conclusão
de que a floresta deu lugar ao pasto. Mais recentemente nota-se
que a produção de grãos está muito
ligada à expansão de pastagens. Hoje se planta
soja em pastagens antigas, mas o gado tem que ser deslocado
para uma nova área.
Uma coisa interessante é o crescimento da soja na
Amazônia, no norte do Mato Grosso e sul do Pará,
onde existem cidades experimentando um boom de riqueza e de
aumento de PIB, mas é preciso ver se esse crescimento
gera uma distribuição de renda melhor do que
a que temos historicamente na região amazônica,
onde a concentração é muito grande.
Então o deslocamento dessas pastagens é para
aéreas desmatadas?
Moutinho: Exato. Os últimos dados do INPE, referentes
a 2003-2004, mostram que mais de 70% das áreas desmatadas
foram convertidas em pastagens, que, apesar de ter um rendimento
baixo, é um investimento seguro. Para grandes e pequenos
produtores ela é tida muitas vezes como uma poupança.
Uma das coisas identificadas em nossa força-tarefa
do Projeto do Milênio é que essas opções
por atividades econômicas que têm impacto significativo
no ambiente devem ser revistas. Por exemplo, é necessário
que se encontrem maneiras de valoração de florestas,
o que promoveria uma competição por florestas
preservadas, e de áreas que estão sendo utilizadas
de maneira sustentável, com outro tipo de uso da terra.
Essa é uma das recomendações do relatório.
Os defensores da agricultura alegam que um dos principais
fatores de extermínio das florestas são as queimadas.
Como o Projeto do Milênio tratou dessa questão?
Moutinho: Nossa força-tarefa realmente liga o fogo
com o desaparecimento de florestas tropicais. Tomemos de novo
a Amazônia, que é o exemplo mais nítido
brasileiro. Foram identificados na região ciclos de
empobrecimento da floresta, sendo o fogo um dos principais
agentes desse processo.
Esse ciclo tem início com a exploração
madeireira de alto impacto, sem cuidados nem manejo florestal.
Na medida em que se tira a madeira numa derrubada seletiva,
abre um número grande de clareiras — pois, para
se ter uma idéia, a cada árvore derrubada outras
cinco são destruídas, porque são esmagadas
ou porque são puxadas para o chão junto com
a maior, devido ao entrelaçamento de cipós.
Logo, tem-se a incidência mais direta do sol na floresta,
ou seja, o interior da mata que era úmido passa a sofrer
uma secagem. Assim, com a massa de material morto que fica,
a temperatura mais alta e a umidade mais baixa, essa floresta
torna-se extremamente inflamável.
Somada à ausência de programas efetivos de prevenção
de incêndio na Amazônia, essas florestas exploradas
correm um risco ainda maior de pegar fogo. Um produtor que
não tem florestas em sua propriedade, ao não
fazer o controle do fogo, pode deixar o fogo escapar para
a área de preservação. Incêndio
que pode se alastrar mais facilmente nas florestas que já
haviam sofrido extração de madeira. Uma vez
queimadas, essas florestas ficam mais vulneráveis à
conversão para pasto ou pra outro tipo de uso da terra.
E assim se fecha o ciclo degradante extração,
queimadas e pasto ou agricultura.
É possível, se não controlarmos esses
desmatamentos e o planeta continuar aquecendo, que tenhamos
grandes incêndios florestais na Amazônia. Há
uma opção do governo e de setores da produção
pelo avanço agropecuário, com o risco do comprometimento
futuro, ou seja, pode ser que todo o potencial agrícola
que está se instalando na região possa estar
comprometido, pois num clima mais aquecido haveria uma redução
drástica de chuvas na região.
No caso do Brasil, para se conter esse avanço madeireiro
ou dos pastos, faltam leis ou falta fiscalização?
Moutinho: A legislação brasileira é
bastante avançada nesse quesito, mas obviamente esbarra
no cumprimento dessas leis. No caso específico do controle
do desmatamento, é preciso que se tenham algumas garantias
básicas. A primeira delas é uma opção
política do governo de que as florestas Amazônica,
Atlântica e até mesmo o Cerrado e os biomas brasileiros
passem a ter uma taxa expressiva de conservação,
e não só preservação. Não
se trata de colocar uma cerca em volta e não deixar
ninguém entrar, mas de conservação, de
uso sustentável.
É preciso também reconhecer definitivamente
que as florestas têm um valor e prestam um serviço
extremamente importante para o país. É preciso
que a comunidade internacional, ou mesmo o governo, encontre
meios para que esse serviço ambiental seja remunerado.
Ou seja, quem fizer a opção por manter a floresta
em pé, ao invés de fazer uma pastagem ou um
campo de soja, seja financeiramente compensado pela manutenção
daquela floresta. É preciso valorizar economicamente
recursos a que hoje só se dá valor quando estão
destruídos — ou seja, floresta boa é aquela
que está derrubada.
Por último, é preciso que se desenvolvam políticas
direcionadas à manutenção de pessoas
dentro da floresta. É fundamental para a conservação
da soberania nacional que, ao se fazer a opção
por floresta, se coloque gente dentro desta, pois a mata sem
gente está vulnerável à todo tipo de
ganância, impacto e várias outras coisas.
Mas como colocar essas pessoas na floresta?
Moutinho: Nós temos já exemplos muito claros
[de floresta sustentavelmente habitada], e com incentivos
é possível aprimorar isso — tanto em reservas
extrativistas quanto na própria exploração
madeireira de baixo impacto ou certificada, como já
existe hoje na Amazônia. O governo lançou um
projeto bastante interessante chamado Assentamento Florestal
[parte do Plano Nacional de Reforma Agrária], no qual
se tem assentamentos do Incra em florestas, em que a população
pode usar de maneira sustentada os recursos não-madeireiros,
e às vezes até madeireiros, e recebem incentivos
para isso. Na medida em que se cria esse mecanismo de valorização
das florestas, estabelecem-se situações de competição
econômica com outros usos da região, com outros
usos da terra.
E como a força-tarefa da qual o sr. participou no
Projeto do Milênio da ONU avaliou a importância
do Brasil para que o mundo atinja os Objetivos do Milênio?
Moutinho: O Brasil tem um papel fundamental nessa história.
O país tem dimensões continentais e detém
o maior bloco de florestas tropicais do mundo. Tem, no caso
específico da Amazônia, uma população
tradicional, com íntima e histórica ligação
com o recurso florestal. No Cerrado, no Pantanal e na Mata
Atlântica ocorre a mesma coisa. É preciso que
o governo e a própria população perceba
isso e faça uma opção pelo caminho da
sustentabilidade.
Se repetirmos os últimos 20 anos na Amazônia,
ou na Mata Atlântica, ou no Cerrado, estaremos optando
por uma autodegradação ambiental, pela grande
concentração de renda e pela manutenção
da pobreza.
ALAN INFANTE
do PNUD Brasil |