|
Tudo começou
com um erro. Aos 17 anos, Dário Ferreira Neto, saiu
de Guaianases, no extremo leste de São Paulo, e foi
procurar o posto do Exército em Osasco (zona oeste).
Ia se alistar. Desacostumado com a geografia da região,
o rapaz desceu do trem na estação errada. Quando
se deu conta, estava no campus da Universidade de São
Paulo. "Fiquei deslumbrado. Não tinha idéia
do que era a USP", conta. "Saí de lá
com uma idéia fixa: Vou estudar aqui."
Ferreira, que abandonara a escola aos 16 anos, antes de concluir
o ensino médio, retomou os estudos. Aturou as gozações
de seus próprios professores, que achavam absurdo o
sonho de entrar na USP. Fez um ano de cursinho popular. Por
fim, passou no vestibular do curso de letras.
Bem diferente é a trajetória de Luana Kawamura
Demange, 23. Filha de professores universitários, Luana
sempre soube que um dia estaria em uma faculdade pública.
"Nem prestei vestibular nas particulares", conta.
Entrou em arquitetura na Unicamp e na USP - a instituição
eleita por ela.
Ele é de Guaianases, um dos bairros mais pobres e violentos
da zona leste. Ela é dos Jardins, o miolo da elite
econômica e cultural paulistana.
Ele vem de uma família com renda inferior a um salário
mínimo por pessoa, estudou a vida toda em escolas públicas
e só saiu de São Paulo pela primeira vez aos
19 anos. Ela tem família com renda superior a 20 salários
mínimos, morou no Japão aos 13 anos e fala inglês,
espanhol e francês.
Para se ter uma idéia do precipício que separa
os locais de origem de Ferreira e de Luana, segundo o Mapa
da Juventude (estudo da Prefeitura de São Paulo sobre
o perfil dos jovens da cidade), na região que inclui
Guaianases, 43% dos jovens estão fora das escolas.
Na região onde estão os Jardins, 63,4% dos jovens
estão matriculados em escolas particulares.
Em comum, os dois agora têm a instituição
em que estudam: a USP. Só que, enquanto a presença
de Luana na universidade é a regra, a de Dário
é a exceção. É isso o que mostra
um estudo concluído na semana passada pelo Núcleo
de Apoio a
Estudos da Graduação, o Naeg, órgão
da USP.
Pelo trabalho do Naeg, mapearam-se os endereços dos
ingressantes na USP entre 1995 e 2004. Já se imaginava
uma concentração de estudantes oriundos dos
bairros mais ricos, mas o resultado surpreendeu pelo excesso.
Apenas uma rua, a Bela Cintra, na região dos Jardins,
conseguiu, no vestibular de 2004, emplacar mais moradores
nos bancos uspianos do que a soma de 74 bairros periféricos
da zona sul.
A Bela Cintra, porém, é apenas o caso mais vistoso
de um quadro de hiperconcentração da oportunidade
de acesso ao ensino superior público nas mãos
de uma pequena parcela da população.
Muito para poucos
Quando se mapeiam as moradias dos ingressantes da
USP ao longo dos últimos dez anos, percebe-se que uma
mancha de bairros em volta do centro da cidade, contendo apenas
19,5% da população total de São Paulo,
açambarca 70,3% do total de vagas.
O lado "B" dessa história é evidente:
aos bairros periféricos, que compreendem 80,5% da população
da cidade, cabem 29,7% das vagas da universidade.
Basta um simples exercício matemático, baseado
nos dados do estudo do Naeg, para concluir que um candidato
ao vestibular da USP que viva no centro da cidade e seus arredores
tem até nove vezes mais chances de conseguir a sua
vaga do que aqueles oriundos do entorno dessa área.
Acontece que essa desigualdade retratada no estudo não
foi criada pela USP, nem existe apenas em relação
à universidade.
Dados de renda e de qualidade de vida reproduzem o mesmo resultado
sociodemográfico.
Aplicado a São Paulo, o IDH (Índice de Desenvolvimento
Humano), criado pela ONU (Organização das Nações
Unidas) para medir o desenvolvimento local com base na expectativa
de vida, no nível educacional e na renda per capita,
classificou as regiões da capital de acordo com sua
semelhança em relação a índices
de países ou continentes.
Bairros como Pinheiros, Jardim Paulista, Moema, Itaim Bibi
e Morumbi ganharam a classificação de "região
européia", por reproduzirem índices de
desenvolvimento de Primeiro Mundo. No outro extremo, as periferias
leste e sul, especialmente, receberam o título de "regiões
africanas" pela similaridade com o continente mais subdesenvolvido
do mundo.
"O modelo de desenvolvimento da atual política
urbana exclui os pobres das regiões centrais e os empurra
para as periferias da cidade, reduzindo seu acesso às
oportunidades", diz Raquel Rolnik, secretária
Nacional de Programas Urbanos do
Ministério das Cidades. "É o que eu chamo
de exclusão territorial, que não é exatamente
a exclusão social, mas que a acentua e obstrui o processo
de ascensão social. E uma das formas de ascensão
é o estudo, particularmente na universidade."
Para Rolnik, os dados da pesquisa do Naeg demonstram que "a
riqueza e as oportunidades circulam nas mãos de quem
já as têm". "E a exclusão territorial
acentua isso porque cria guetos."
O estudo da USP é resultado do esforço do Núcleo
de Apoio a Estudos da Graduação (Naeg), coordenado
pelo professor Adilson Simonis, do Instituto de Matemática
e Estatística. Resultou da engenhosidade e do esforço
obsessivo do professor de dotar a USP de estatísticas
que permitam entender o lugar da universidade na cidade de
São Paulo e no país.
O próximo desafio é saber o que será
dos alunos que se formarem. O site do Naeg (naeg.prg.usp.br)
está cadastrando ex-alunos da USP. Um dos objetivos
é saber se a universidade é capaz de encurtar
a distância social que separa Ferreira de Luana. Nem
isso ainda dá para saber.
LAURA CAPRIGLIONE
FERNANDA MENA
da Folha de S.Paulo
|