Debruçado sobre uma ilustração
do início do século 17, o professor Nestor Goulart
Reis Filho ajeita os óculos, aponta para a pequena
construção no alto da colina e diz: “Aqui
está a igreja, exatamente como ela foi construída
pelos jesuítas.”
Satisfeito, explica que a imagem preenche
uma importante lacuna na história de São Paulo
só agora desvendada. “Foi a primeira construção
em taipa da vila, o marco zero da urbanização.”
Ailustração foi feita
por volta de 1608 e a construção substituiu
a capela de palha erguida pelos jesuítas na fundação
de São Paulo, em 1554. “Não sabíamos
como era essa igreja de taipa com seus detalhes”, diz
Reis Filho, lembrando que
a igreja que conhecemos, a do Pátio do Colégio,
é uma cópia da que foi erguida muito tempo depois,
no século 18.
O professor da Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU-USP)
fala, com empolgação, dessa e de outras descobertas
que fazem parte de São Paulo: Vila, Cidade, Metrópole.
O livro será lançado nos 450 anos da cidade.
Fugindo do convencional, faz uma releitura das transformações
urbanas ocorridas ao longo dos séculos a partir de
mapas antigos, desenhos e fotografias, muitos inéditos.
Pelo livro, São Paulo revela-se
enigmática. Em 1560, quando foi elevada pela coroa
portuguesa à categoria de vila, a atual metrópole
era tão pequena, mas tão pequena, que sua população
à época era estimada em 60 pessoas – 30
portugueses e 30 mamelucos. “Não é uma
história de bandeirantes, jesuítas ou imigrantes.
É a história da própria cidade.”
Na análise de mapas e plantas
da cidade do século 17, Reis Filho fez descobertas
surpreendentes. Livros de história afirmam que São
Paulo não passava de uma vila precária, isolada
do mundo no meio do sertão e com habitantes toscos.
Só que não era bem assim. Naquela época,
as suas ruas principais já eram traçadas com
rigor técnico.
“Havia na cidade pelo menos
um ou dois profissionais gabaritados em arquitetura e urbanismo
para traçar ruas retas”, explica. E esses profissionais
não eram simples curiosos, mas engenheiros militares
que vinham da Europa para a Colônia
com formação em arquitetura militar.
Reis Filho dedicou anos de estudo
para analisar atas da Câmara Municipal, livros e cruzar
informações das mais variadas fontes. Às
vezes tinha-se a imagem, mas não os dados. E vice-versa.
Na Europa, o pesquisador garimpou imagens e documentos guardados
em museus e instituições européias. Com
isso, identificou e datou os desenhos, muitos de autores desconhecidos.
“É como trabalhar com um vaso quebrado. A partir
de uma peça vamos juntando com outras e tentamos
reconstituir todo o conjunto.”
São cerca de 200 ilustrações
distribuídas em 250 páginas. Os capítulos
foram divididos de acordo com a evolução cronológica,
partindo da construção da vila – entre
1554 e 1600 – chegando até os dias atuais, em
que é feita uma reflexão
sobre a região metropolitana e o cenário da
cidade em 2004. Além de documentos
oficiais, há também belas imagens pintadas por
viajantes de passagem por São Paulo, como do artista
francês Jean-Baptiste Debret ou do autríaco Thomas
Ender.
A obra será útil para
pesquisadores, mas também para mostrar ao paulistano
aspectos da cidade que ele próprio desconhece. Um de
seus cuidados foi relacionar locais descritos em plantas antigas
com o nome atual dos logradouros.
Surgem aí histórias
curiosas. Por exemplo, o Beco do Pinto, que ligava o Pátio
do Colégio ao Rio Tamanduateí, onde se buscava
boa parte da água consumida na vila nos primeiros séculos.
O pequeno beco existe até hoje, mas está fechado
por um portão que fica na Rua Roberto Simonsen, ao
lado da casa da Marquesa de Santos.
E é justamente para o paulistano
que vive hoje na metrópole que Reis Filho manda um
recado no prefácio: “Sendo as imagens belas,
poderá o leitor esquecer alguns dos aspectos menos
atraentes da cidade e se envolver com a sedução
de suas constantes transformações.”
Idéia
Corria o ano de 1954 e São Paulo estava em festa por
causa do 4.º Centenário. Em uma conversa com alunos
na FAU, o então diretor do Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (Iphan) em São
Paulo, Luiz Saia, comentou que, por causa da ausência
de documentação, não havia esperança
de saber como realmente era a arquitetura e o urbanismo da
origem da cidade.
Coube ao então aluno da universidade
Reis Filho preencher essa lacuna, 50 anos depois. Ele lembra
que, em 1954, um álbum com as plantas da cidade lançado
para a festa dos 400 anos reunia 11 desenhos, sendo que o
mais antigo era de 1810. Agora, foram identificados 12 documentos
do período colonial. O livro, aprovado pela Lei Rouanet,
já está sendo analisado pela Edusp e fará
parte do cronograma de comemorações da universidade
e da Prefeitura para os 450 anos.
Por se tratar de uma obra cara para
a publicação, ele espera parcerias com a iniciativa
privada.
Marcus Lopes,
do O Estado de S.Paulo.
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