Mal o portão se abre e a
ponta da bengala vermelha e branca cutuca a calçada.
Braço esticado, ele sente um degrau de um metro de
altura junto à casa vizinha. Num piscar de olhos, pula
e já está no meio da rua. Sobe a íngreme
ladeira em ritmo de atleta.
Medalha de ouro nos Jogos Paraolímpicos de Atenas,
no mês passado, o jogador de futebol Mizael Conrado,
26, é cego desde a adolescência. Aprendeu no
esporte a superar obstáculos. Em São Paulo,
a desviar dos mesmos -depois de tombos em placas e carros
estacionados sobre a calçada.
Suas dificuldades na cidade começam quando ele põe
o pé para fora de sua casa, um sobradinho no Jardim
São Roberto (zona sudeste). Cada morador construiu
um acesso próprio à sua garagem, transformando
a calçada numa barreira quase intransponível,
com degraus de mais de um metro de altura. "É
uma montanha-russa. Sou obrigado a andar pelo meio da rua
para não cair."
A caminhada de duas quadras até o ponto de ônibus
reserva surpresas constantes, como bueiros destampados. O
que lhe causa mais vergonha é cair sobre barracas de
camelôs.
Camisa 10 da seleção de futebol de 5 (quatro
cegos na linha e um goleiro que enxerga), Mizael faz academia
e treina três vezes por semana com bola (com guizo interno).
O esforço foi recompensado. Em Atenas, o Brasil venceu
a arqui-rival Argentina nos pênaltis e sagrou-se campeão
invicto. "O mais importante foi mostrar nosso potencial.
Temos de associar as palavras deficiente e saúde",
diz.
O dentista paulistano Joon Sok Seo exemplifica à perfeição
o desejo de Mizael. Acometido pela poliomielite aos dois anos,
ficou paralisado do pescoço para baixo.
Apesar das seqüelas nos braços e nas pernas, ele
ganhou a prata na natação em Atenas, no revezamento
4 x 50 medley. Mas por pouco ele não ficou fora da
Paraolimpíada de Atenas. Três semanas antes das
seletivas, caiu na escadaria de um restaurante, que só
tinha banheiro em um dos pisos e degraus muito altos e curtos.
"Luxei o ombro esquerdo. Só consegui a classificação
porque tive uma recuperação relâmpago."
Obstáculos quase imperceptíveis para a maioria,
as barreiras arquitetônicas estão por toda a
cidade, dificultando a vida de Mizael, de Joon e de cerca
de 1 milhão de paulistanos.
Com seus braços de nadador olímpico, Joon supera
rampas íngremes sem ajuda quando usa cadeira de rodas.
Se não fosse atleta, não entraria em seu prédio,
já que a rampa excede muito a inclinação
máxima recomendada de 12.
Contra o relógio
Joon, 37, sabe que em alguns anos perderá
o físico de atleta. "É uma questão
de tempo para que eu precise usar a cadeira de rodas o tempo
todo. Será que até lá a cidade vai estar
adaptada a mim?", questiona.
FABIO SCHIVARTCHE
da Folha de S.Paulo
|