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No ano passado , 474 jovens morreram
na cidade de São Paulo vítimas de acidentes com motocicletas;
a maior parte deles é motoboy. No primeiro semestre deste
ano, foram mais 171 mortes, conforme o divulgado na semana
passada. Nesse período de 18 meses temos, portanto, uma média
de um caso por dia.
Para ter uma medida de comparação, em 30 anos de conflito
armado na Irlanda do Norte, encerrado com festejos mundiais
na última quinta-feira, desapareceram precocemente 3.600 vidas
- dez mortes por mês.
Note-se que estou me referindo apenas a São Paulo. Os números
nacionais, ainda nem sequer computados, certamente são bem
maiores e integram a lista das 30 mil mortes por ano por causa
do trânsito -quase todo o conflito irlandês.
Acidentes com motos são um dos grandes ceifadores de jovens
no país e revelam uma rede de cumplicidades, numa espécie
de assassinato coletivo. Esse massacre é possível porque os
governos não fiscalizam, as empresas contratam jovens despreparados
e exigem que façam entregas o mais rapidamente pelo menor
preço. Os consumidores não se incomodam, caso a encomenda
tenha chegado às mãos.
A imensa maioria das pessoas prefere, porém, culpar os motoboys,
chamando-os de irresponsáveis, selvagens, incivilizados.
O caso dos motoboys ilustra como os brasileiros reagem à mazelas
nacionais, como os casos de corrupção. O brasileiro acha que
a culpa, em geral, é sempre dos outros, como mostrou uma bateria
de pesquisas divulgadas na semana passada pelo Datafolha.
Metade dos brasileiros (49%, para ser mais exato) não conhece
um político honesto. Lula sai-se melhor, mesmo assim apenas
entre 20% dos entrevistados. Aproximadamente 70% dos cidadãos
sentem mais vergonha do que orgulho dos deputados e senadores.
Isso significa que, numa hipótese absurda, se fechassem o
Congresso não haveria assim tanta indignação.
Quase todos se consideram honestos: 83% dizem que não trocariam
os votos por dinheiro. Mas 73% acham que seus compatriotas
não resistiriam à sedução. Traduzindo: a culpa é do outro.
Ou seja, sou honesto e responsável. Mas os outros -os políticos
e meus vizinhos não merecem confiança.
Traduzindo ainda mais, os brasileiros imaginam que não dá
para confiar em brasileiro.
Se os brasileiros se consideram honestos e têm vergonha de
seus políticos, por que não elegem gente séria?
A explicação para esse paradoxo está no efeito motoboy, no
qual se detecta uma cadeia de omissões e cumplicidades.
Antes de votar, o eleitor não estuda direito a vida do candidato
e, depois, não acompanha seu desempenho. Caso acompanhe, não
reclama, não manda e-mail, não protesta.
É como se o indivíduo fizesse uma compra sem analisar o produto.
Não vê as garantias, não se interessa pela procedência e não
compara os preços. Depois de pagar, descobre que o que comprou
não presta e passa a responsabilizar apenas para a loja.
Na lógica do sou-honesto-culpado-é-outro, Lula responsabiliza
o PT pela crise, apesar de sua íntima relação com os pivôs
das acusações, a começar por José Dirceu. Também acusa as
"elites" e a imprensa por estarem insuflando a onda de denúncias.
O PSDB se comporta como se esse debate de caixa dois de campanha
fosse dos outros, mesmo depois de flagrada a ajuda a seu presidente,
Eduardo Azeredo, pelo mesmo duto que ajudava o PT. A culpa,
gritam os tucanos, é de petistas que procuram desviar o foco
das investigações.
Como o PT já não tem muitas explicações, está tentando alargar
mesmo as investigações para que todos se transformem em mira.
Quer que a CPI levante os dados desde os tempos de Fernando
Henrique Cardoso.
Como o crime é geral, não haveria a quem culpar. Esse jogo
de ilusões custa caro. Prestamos pouca atenção sobre como
usam dinheiro público, não só por causa dos políticos que
elegemos e não fiscalizamos. Nosso maior ralo de recursos
públicos não é a corrupção, mas o desperdício. Gastam-se por
ano, no país, cerca de R$ 200 bilhões em programas sociais,
mas os indicadores são ruins, péssimos; vamos pior do que
nações economicamente mais pobres.
Pais não se envolvem nas decisões das escolas. Conselhos municipais,
estaduais e federais, com a participação da sociedade civil,
para acompanhar questões de saúde, educação, assistência social
ou ambiente ainda são frágeis. Não se discute Orçamento, não
se conhecem indicadores dos projetos. Daí, em parte, o enorme
espaço para o marketing, sempre em busca da simplificação.
Confunde-se o simples e o simplório.
No final, a culpa não é de ninguém, mas alguém sempre paga
a conta.
PS - A propósito das culpas, neste mês um grupo de motoboys
da cidade de São Paulo vai usar uma faixa branca no braço
para pedir paz. A idéia é arrebanhar o maior número possíveis
de jovens, montados em suas motos, para tentar diminuir o
morticínio. Muitas empresas, que se gabam de suas atitudes
socialmente responsáveis, não se sentem culpadas ao exigir
que os motoboys corram como doidos no trânsito. Mas seus executivos
se incomodam quando o retrovisor do carro é atingido por um
deles.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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