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Está em gestação
um projeto cultural jamais visto no Brasil: transformar uma
cidade num imenso palco. Durante 24 horas seguidas, danças,
peças de teatro, exposições, leituras
de poesia, palestras, concertos e shows serão apresentados
nos mais diversos locais, simultaneamente, na cidade de São
Paulo.
A idéia seria oferecer, de madrugada, apresentações
de uma orquestra sinfônica ou de uma ópera em
imponentes salas de concerto, enquanto escolas de samba desfilassem
no sambódromo ou um grupo de rock se apresentasse numa
casa de espetáculos. Depois dos concertos, seria possível
ir a uma livraria para uma sessão de autógrafos
ou, quando o sol estivesse nascendo, a uma peça de
teatro ou a um balé contemporâneo num parque.
Batizado de Cultura 24 Horas, o projeto, cuja realização
está prevista para este ano ainda, talvez ofereça
menos eventos do que o planejado ou nem sequer saia do papel,
mas, mesmo assim, revela uma visão de vanguarda: mostrar
que, em meio à crônica deterioração
urbana, à violência e ao desemprego, uma comunidade
é palco de efervescência social, política
e cultural.
A rigor, o PT deveria ter a cara desse tipo de experimentação
- afinal, juntam-se na cidade de São Paulo artistas
e intelectuais para inventar ou reinventar alguma coisa. Um
dos sinais da pesquisa Datafolha, publicada hoje, é
que o PT vai se afastando cada vez mais dos holofotes desse
"palco".
Viáveis ou não, projetos assim revelam a resistência,
da qual o PT foi uma das luzes, de uma comunidade atacada
por todos os lados. Agora, entretanto, como aponta o Datafolha,
o partido se distancia do espírito da cidade em que
foi concebido e nutrido para ganhar o país. A crise
ética que envolve Lula atinge todo o Brasil, mas é
especialmente significativa em São Paulo. Essa decepção
é o que explica, pelo menos em parte, a maior aprovação
de José Serra, detectada pelo Datafolha. Lula e Serra
estão em empate técnico num eventual segundo
turno da disputa presidencial. A vantagem do prefeito alarga-se
essencialmente entre os eleitores de ensino superior.
Pode-se não gostar do PT, mas é impossível
não reconhecê-lo como uma das riquezas paulistanas.
É resultado de uma associação, em larga
medida, de dirigentes sindicais, encabeçados por Lula,
egressos de partidos de esquerda, com intelectuais da Universidade
de São Paulo.
O PT surgiu em São Paulo não somente urbano
mas metropolitano, atrelado a segmentos expressivos das elites
pensantes e a empresários modernos com vocação
social.
Comemora-se em São Paulo a redução da
taxa de homicídios numa velocidade nunca vista no país
-é essa, neste momento, a experiência social
mais importante da cidade. Esse sucesso tem toda uma lista
de sócios, mas é impossível deixar de
relacioná-lo a programas lançados pelas prefeitas
eleitas pelo PT (Luiza Erundina e Marta Suplicy) na periferia.
Coube ao partido promover ações de renda mínima,
por exemplo. Uma boa parte dos líderes comunitários
que desenvolvem planos de combate à violência
esteve ou está próxima, em maior ou menor grau,
do PT.
Quem não vê São Paulo apenas pelos chavões
e acompanha esse movimento de resistência sabe que vem
ocorrendo aqui uma veloz transformação, que
vai produzindo palcos simbólicos. Uma prisão
(Carandiru) agora é um espaço para lazer e educação
da juventude; uma estação de trem abandonada
(Júlio Prestes) se transforma numa sala de concerto;
outra estação decadente (Luz) prepara-se para
abrigar um memorial da língua portuguesa; o sambódromo,
cujas instalações estavam vazias fora do período
do Carnaval, passou a ser também uma escola complementar
ao ensino regular. A "cracolândia", símbolo
da deterioração, é preparada para receber
um pólo de tecnologia de comunicação.
Não é obra de um governo, mas obra da vanguarda
de uma comunidade, integrada pelo PT e por seus representantes
e simpatizantes. É o reflexo de uma cidade que, além
das articulações de trabalhadores, de empresários,
de associações de rua e de bairro, se educa.
Dos 7.278.988 habitantes de São Paulo com mais de 20
anos, 1.482.422 têm diploma de ensino superior.
É nesses segmentos de maior escolaridade, como mostra
o Datafolha, que a imagem de Lula vem sofrendo maior impacto
-subiu dez pontos o índice de eleitores que consideram
o seu governo ruim ou péssimo. A imagem do partido
sempre foi associada à elite acadêmica.
As pesquisas indicam que, em média, Lula vai mantendo
seu prestígio, o que dá a falsa impressão
de que, apesar de tudo, a situação pode se manter
sob controle. Indicam, porém, que o PT está
mais próximo do Brasil provinciano, atrasado, deseducado.
Esse resultado sustenta-se, em parte, na desinformação
de quem não acompanha o que está acontecendo
e, se acompanha, não entende.
Por isso essa estrela brilha menos no palco de uma cidade
disposta a se apresentar, pelo menos num dia, como um lugar
que possa consumir cultura durante 24 horas seguidas.
PS - Por ver São Paulo como um grande laboratório
da vanguarda social brasileira, considero que José
Serra terá de oferecer um excepcional argumento -coisa
que não vejo nem remotamente- para abandonar seu compromisso
de que não faria de sua eleição para
prefeito um trampolim. Podem me chamar de provinciano, mas
sou dos que consideram o bairro uma cidade e a cidade um país.
O desenvolvimento brasileiro não se constrói
em Brasília, mas nas cidades, cada vez mais fortes,
com os prefeitos no papel de principais articuladores das
políticas federais e estaduais em associação
com os líderes locais. A saída de Serra seria
encarada como mais uma decepção provocada por
um político que empenhou a palavra (aliás, até
a colocou por escrito) e voltou atrás. A propósito,
é dele a idéia do evento Cultura 24 Horas.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, na editoria Cotidiano.
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