Jamais
tivemos tanta gente convergindo para um mesmo diagnóstico
sobre nossos problemas
A revolta dos cidadãos que inibiu o abusivo aumento
do salário dos parlamentares faz parte de um longo
e tumultuado aprendizado sobre direitos e deveres -esse aprendizado,
embora lento e ainda precário, é o que me leva
a dizer, neste último dia do ano, que o Brasil nunca
esteve tão bem.
Não está bem por causa de seus indicadores sociais
(péssimos para o nosso grau de desenvolvimento econômico,
apesar de todos os avanços) nem, muito menos, pelos
números do crescimento da produção, sofrível
sob todos os aspectos.
A indigência social e a lentidão na geração
de empregos explicam em boa parte o clima de guerra civil,
cujo fragmento vimos na semana passada no Rio de Janeiro.
Como a nação que, por muito tempo, mais cresceu
no planeta, sem sofrer com guerras, conflitos regionais ou
brigas religiosas, somos um notável exemplo de fracasso.
Bastaria apreciar uma única informação
para ver o tamanho do fracasso: despendemos mais de quatro
meses todos os anos para sustentar o poder público,
mas apenas 5% dos alunos que saem do ensino médio oficial
dominam apropriadamente a língua portuguesa.
O que nunca esteve tão bem no país é
a formação de consensos básicos sobre
como o país deveria funcionar para crescer mais, distribuir
melhor a renda e diminuir a pobreza -alguns desses consensos
demoraram décadas para serem conquistados.
A maioria das pessoas já nem presta mais atenção
nos índices de inflação. Demorou muito
tempo para que se visse, com clareza, que o pobre era a maior
vítima dos preços altos e, mais ainda, que o
rigor dos gastos públicos era fundamental para controlar
a inflação.
Ninguém seriamente teria a coragem de propor hoje um
crescimento com preços subindo, até porque o
presidente não conseguiria se sustentar.
Também já não se valoriza tanto o sistema
democrático, afinal virou rotina. Foram necessários,
porém, 20 anos para que ninguém, com um mínimo
de importância, defendesse a idéia de que coibir
as liberdades é um jeito de proteger uma nação.
Quem conseguiu derrotar a praga inflacionária não
foram os militares tão fortes, mas os civis, obrigados
a convencer pelo diálogo.
Demorou ainda mais para se tornar visão dominante a
crença de que, com todos os seus defeitos, a economia
de mercado, desde que equilibrada com investimento público
em educação e saúde, é mais eficiente
e mais justa. O dirigismo estatal se prestou a cenas explícitas
de corrupção e incompetência. Não
é à toa que Lula e Delfim Neto quase falam hoje
a mesma língua. O presidente aprendeu sobre os valores
do capitalismo -e Delfim sobre a importância de investimentos
maciços em capital humano.
Se a democracia foi eficiente para enfrentar a inflação,
ainda não obteve bons resultados em termos de crescimento
econômico -um desastre que, entre idas e vindas, perdura
há mais de duas décadas, espalhando miséria
por todos os lados.
Tanto tempo produzindo tanto desemprego levou ao aprendizado
de que, na raiz do baixo crescimento, está um Estado
que gasta muito e, pior, gasta mal, cobrando muito imposto
e forçando altas taxas de juros.
O desmonte da máquina estatal, tornando-a estímulo,
e não trava à produção e à
geração de empregos, estará para o futuro
como a batalha pela volta da democracia esteve no passado.
A reação à proposta de duplicação
dos salários dos parlamentares e a qualquer aumento
de imposto integra a percepção sobre o poder
destrutivo do Estado.
A mais importante das visões que vão se tornando
dominantes é a de que a democracia, o crescimento e
a distribuição de renda são limitados
sem educação de qualidade. Nunca, como neste
ano, o assunto mereceu tanta atenção de tanta
gente poderosa, a ponto de os principais empresários
do país terem feito um pacto pela educação.
Com qual rapidez iremos aproveitar todo esse aprendizado
é ainda dúvida. O fato é que, se Lula
não souber gerar mais crescimento com distribuição
de renda, sua vida será um inferno como a de qualquer
outro presidente, até porque o clima de guerra civil
só tende a aumentar.
Mas nunca tivemos tanta gente convergindo para um mesmo diagnóstico
sobre nossos problemas e para um projeto de país -por
isso, o Brasil nunca esteve tão bem.
PS - Neste momento, estou em Barcelona, um dos melhores exemplos
de competência pública mundial ao sair da rota
da degradação. Tornou-se uma cidade modelo,
exuberante, rica, porque seus governantes e moradores decidiram
trabalhar em torno de um projeto comum.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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