Além
de se tornarem mais curtas que as dos tempos sem doença,
as poesias de Leide passaram a refletir a solidão
Para a advogada Leide Consuelo Moreira, a poesia é,
literalmente, uma questão de vida ou morte. "Quando
estou escrevendo poesias, sinto que estou viva" - ela
ditou essa frase por um código de piscadas de olhos,
os únicos movimentos que subsistiram em seu corpo,
paralisado dos pés até a cabeça.
Especializada em marketing de projetos culturais, Leide tinha
como um de seus prazeres fazer longas caminhadas pela cidade
de São Paulo, de preferência passando pelo parque
Ibirapuera, próximo à sua casa. Escrevia poesias
sem maiores pretensões. "Pura brincadeira",
conta. Escrevia coisas desse tipo: "Se viver é
uma arte/ e da vida fazemos parte/ vamos viver diferente/
colorindo a vida da gente".
No ano de 2004, apareceram os primeiros sinais de que algo
estava errado. Seus passeios a pé tornaram-se cansativos
e, aos poucos, o corpo perdia movimentos como se ela estivesse
vivendo em câmara lenta. Soube então que sofria
de esclerose lateral amiotrófica -uma doença
degenerativa incurável que paralisa o corpo, exceto
a função ocular.
Neste momento, a poesia deixou de ser uma brincadeira e virou
uma forma de se manter conectado à vida.
Com a ajuda de parentes, Leide desenvolveu a habilidade
de piscar para partes de uma tabela com letras, números
e uma série de palavras, formando as frases -elaborar
uma frase pode demorar muitas horas. Além de se tornarem
mais curtas, quase telegráficas, do que as dos tempos
sem doença, as poesias de Leide mudaram o tom e passaram
a refletir a solidão.
"Minha vida se esvaindo./ Não sei se vou chorando
ou sorrindo./ Sorrindo pondo fim a uma agonia que não
agüento mais./ Chorando por deixar para trás pessoas
que amo demais."
No entanto, ainda existem momentos de encantamento. Um deles
provocado por um beija-flor que freqüentemente pousa
no parapeito de sua janela. "Vem de manhã pousar
na minha janela/ vem compartilhar a tua alegria/ me mostrar
que a vida pode ser bela."
Quando trabalhava, Leide viabilizava projetos culturais de
seus clientes - e, agora, quer viabilizar o seu projeto cultural.
Publicar um livro com suas poesias, intitulado "Letras
da Minha Emoção".
Seus parentes fizeram um livro caseiro e o distribuem de mão
em mão até que, quem sabe, algum editor se sensibilize
- se o projeto não sair do papel, ela sabe que será
mais uma de suas adversidades com as quais terá de
lidar.
Uma de suas poesias, chamada Trilhas da Vida, diz o seguinte:
"Páginas viradas/ determinam/ o tudo e o nada./"
PS - Enquanto o livro não vem, coloquei algumas poesias
de Leide abaixo:
Amar vale a pena
Amar faz bem
Amar é importante
faz sorrir a todo instante
E faz sofrer também
Dilema
Minha vida se esvaindo
Não sei se vou chorando ou sorrindo.
Sorrindo pondo fim a uma agonia que não agüento
mais.
Chorando por deixar para trás pessoas que amo demais.
Trilhos da vida
Páginas viradas
determinam
o tudo e o nada.
Cotidiano
Num quarto de apartamento,
Sitiada por fora e por dentro,
Meu mundo é um vai e vem,
Das coisas que o quarto contém.
Além dos livros, música e televisão
que procuram distrair minha solidão
Há a paisagem da janela
Por sinal, nada bela
E assim a vida vai me levando
Para onde ou até quando
E num quarto de apartamento
Espero chegar meu momento
Primavera
Primavera floresce a hera do meu jardim
Primavera floresce a solidão em mim.
Coluna originalmente publicada na
Folha de S.Paulo, editoria Cotidiano.
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