Sem mudar
o conceito de educação pública, modelos
de inclusão como o Bolsa Família serão
sempre frágeis
A imensa maioria dos estudantes do colégio Visconde
de Porto Seguro, criado em 1878 pela colônia alemã,
em São Paulo, consegue entrar nas melhores faculdades,
algumas delas fora do país -o colégio aparece
sempre nas listas das dez melhores escolas da cidade. O que
aconteceria se ele recebesse exclusivamente moradores de uma
favela?
O Porto Seguro mantém, em suas instalações,
a Escola da Comunidade, com 850 crianças e adolescentes
da vizinha favela de Paraisópolis, no Morumbi. São
disponibilizados os mesmos professores dos estudantes que
pagam mensalidade. Os alunos com dificuldades de aprendizagem
recebem reforço fora do horário regular, além
de uma série de atividades culturais. Há diferenças
curriculares, mas não essenciais: eles não precisam
aprender alemão e espanhol, por exemplo.
Fora dos sonhos, dificilmente governos conseguiriam manter,
em especial numa favela, uma rede de ensino com a qualidade
da Escola da Comunidade, cuja mensalidade, caso fosse cobrada,
não sairia por menos de R$ 1.000; o valor mensal, na
rede oficial, mal chega aos R$ 100 mensais.
Vejamos, então, como seus alunos entram nas faculdades
-o resultado, inquietante, é um dos melhores casos
sobre como o desafio de reduzir a desigualdade é maior
do que se imagina.
Da primeira turma do ensino médio, com 76 estudantes,
formados no ano passado, somente 12 deles entraram nas faculdades,
todas elas privadas.
Posso assegurar que a direção do Porto Seguro
leva muito a sério a sua parceria com a favela de Paraisópolis
-portanto, está aqui excluída a possibilidade
de desleixo.
A primeira conclusão: o baixo número de aprovados
demonstra que qualquer escola, por melhor que seja, tem os
seus limites de desempenho. Economistas especializados em
educação fazem cálculos matemáticos
mostrando que 30% do aprendizado de uma criança e de
um adolescente viriam da sala de aula. O restante: 1) o nível
intelectual da família e o seu empenho na formação
dos filhos; 2) a vivência cultural do indivíduo,
que significa acesso a livros, filmes, peças de teatro,
concertos, museus, viagens, notícias.
Há nos Estados Unidos famílias que, por motivos
religiosos, se recusam a enviar os filhos à escola.
O pai e a mãe, com ajuda de amigos, preferem ensiná-los
em casa. Na média, suas notas não diferenciam
daquelas dos alunos regulares.
Nada disso significa, obviamente, que não se deva investir
na qualidade do ensino público desde a pré-escola.
Significa que não estamos mirando no alvo. Nos bairros
pobres, especialmente em favelas, cada mulher tem em média
cinco filhos, os pais são ausentes, o analfabetismo
funcional é disseminado. É comum o abuso de
drogas, as doenças não são corretamente
tratadas.
Mas, em geral, os professores e diretores são treinados
(mal treinados, muitas vezes) -assim como os funcionários
das secretarias da Educação- a trabalhar nos
limites das salas de aula.
Já perguntei várias vezes a secretários
municipais e estaduais da Educação se eles conheciam
a saúde dos alunos. Muitos me olham como se a pergunta
fosse indevida, afinal quem deveria cuidar disso é
outro secretário. Nem se dão conta do elementar
fato de que boa parte dos estudantes sofre de doenças
simples de serem tratadas (problemas de vista e anemia por
carência de ferro, por exemplo) e que os impedem de
prestar atenção.
Conheço escolas que não tiram nenhum proveito
de centros culturais, esportivos e de saúde localizados
na sua rua, a poucos metros de distância. Ou que nunca
pedem ajuda a uma universidade de seu bairro. Contam-se nos
dedos (e não exagero) as cidades que encaram a educação
com uma questão multidisciplinar.
A lição da Escola da Comunidade vai muito além
da favela de Paraisópolis: se não for mudado
urgentemente o conceito de educação pública,
que vai muito além da escola, modelos de inclusão
como o Bolsa Família, os programas de geração
de renda e até o investimento na formação
de professores serão sempre frágeis.
PS - Vale acompanhar uma das soluções encontradas
pelo Porto Seguro para melhorar o desempenho da Escola da
Comunidade: oferecer cursos supletivos fundamental e médio
aos pais dos alunos, tornando-os cúmplices do aprendizado
dos filhos.
Coluna originalmente
publicada na Folha de S.Paulo, editoria
Cotidiano.
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